Ao longo da minha trajetória como parlamentar italiana e advogada dedicada à cooperação internacional, sempre defendi que nenhuma nação pode enfrentar sozinha as grandes crises do nosso tempo. A segurança alimentar é uma dessas causas universais: ultrapassa fronteiras, ideologias e economias.

Em 2025, a FAO celebra 80 anos. Mais do que uma instituição histórica, é um farol que guia a humanidade em meio às transformações que desafiam nossa sobrevivência — tecnológicas, climáticas e sociais. O futuro da alimentação já não é uma questão de amanhã, mas uma urgência de hoje.

Este artigo encerra a série especial que escrevi ao longo do ano em homenagem aos 80 anos da FAO — uma reflexão sobre seu papel, seus desafios e as oportunidades que moldam o futuro da alimentação global.

Alimentação em transformação
O relatório The Future of Food and Agriculture: Trends and Challenges da própria FAO é claro: o modelo atual de produção e consumo não é sustentável. “Business as usual” deixou de ser uma opção. Se quisermos garantir um planeta saudável e uma humanidade nutrida, precisaremos de mudanças estruturais — do campo às cidades, das políticas públicas às cadeias de valor.

A revolução tecnológica no campo
Inteligência artificial, biotecnologia e agricultura de precisão já estão transformando os sistemas agroalimentares. Drones monitoram solos, algoritmos otimizam colheitas e a edição genética via CRISPR promete maior produtividade — até 70% em regiões vulneráveis, segundo a FAO.

Essas inovações podem reduzir desperdícios em até 30% e mitigar a fome em áreas áridas da África Subsaariana. Mas o progresso tem seu preço: a dependência tecnológica pode excluir milhões de pequenos agricultores, responsáveis por 80% da produção nos países em desenvolvimento.

Na Itália, testemunhei esse paradoxo: a digitalização impulsionou exportações de produtos artesanais, mas comunidades rurais sem conectividade ficaram ainda mais isoladas.

A FAO tem, portanto, o dever de democratizar o acesso à inovação — fortalecendo programas como o FAST Partnership, que une clima, agrifood e finanças para acelerar tecnologias inclusivas.

O clima como disruptor global
As mudanças climáticas deixaram de ser uma previsão distante. Até 2050, o aquecimento global poderá reduzir colheitas em até 20% em regiões tropicais, ampliando a insegurança alimentar de 500 milhões de pessoas.

Secas, enchentes e fenômenos extremos já custam bilhões à agricultura global e ameaçam tornar dietas saudáveis inacessíveis a 2,4 bilhões de pessoas, segundo o SOFI 2025.

Assim como o Acordo de Paris busca compromissos climáticos, a FAO precisa ocupar espaço central nesses debates, promovendo uma agricultura climática-inteligente — que una agroecologia, reflorestamento e inovação verde para reduzir emissões e proteger a biodiversidade.

É nesse contexto que o crédito de carbono surge como um eixo estratégico da transição ecológica. A Europa, sede de grandes indústrias, já busca compensar emissões e alcançar a neutralidade de carbono por meio desses créditos. A agricultura, por sua vez, tem papel fundamental nesse equilíbrio: as propriedades rurais, ao preservarem solos, florestas e práticas sustentáveis, geram créditos de carbono que podem ser comercializados e revertidos em novos investimentos verdes.

A FAO tem grande responsabilidade nesse processo — não apenas em promover a inovação e a agricultura sustentável, mas também em estimular e regulamentar a geração de créditos de carbono. Dentro da própria produção agrícola, nasce também uma produção ambiental: a que compensa, neutraliza e restaura o planeta.

Desigualdade social e insegurança alimentar
Até 2050, 68% da população mundial viverá em áreas urbanas. A urbanização acelerada cria os chamados “desertos alimentares”: regiões onde o acesso a alimentos frescos é limitado e caro.

As desigualdades de gênero também persistem. Mulheres representam 43% da força de trabalho agrícola, mas continuam enfrentando barreiras no acesso à terra, crédito e tecnologia — um obstáculo direto à equidade e à segurança alimentar.

A pandemia e os conflitos recentes na Ucrânia e no Sudão revelaram fragilidades profundas. A fome aguda atinge hoje 281 milhões de pessoas. Superar esse quadro exige políticas integradas — proteção social, empoderamento feminino, inclusão digital e valorização de saberes tradicionais.

Os grandes desafios da FAO
A FAO enfrenta hoje três grandes desafios estratégicos:
1. Fragmentação – Falta de integração entre setores como agricultura, saúde e comércio, que ainda operam em silos.
2. Financiamento – Em um mundo endividado em US$ 97 trilhões, investimentos em P&D agrícola caíram, comprometendo metas dos ODS.
3. Credibilidade – Em tempos de desinformação, a FAO precisa reafirmar-se como fonte de dados confiáveis e base de políticas públicas.

O relatório Transforming Food and Agriculture Through a Systems Approach já aponta o caminho: governança integrada e sistêmica, que una governos, ONGs e setor privado em torno de metas comuns.

O World Food Forum 2025, dedicado à juventude e à inovação, será uma oportunidade crucial para renovar esse compromisso global.

FAO: catalisadora da transformação
A FAO é mais do que uma observadora. É arquiteta do futuro alimentar. Seu papel deve ser triplo:
1. Catalisadora de transformação, promovendo os “Quatro Betters” — melhor produção, melhor nutrição, melhor meio ambiente e melhor qualidade de vida.
2. Promotora de equidade, garantindo que a inovação chegue também a mulheres, jovens e pequenos produtores.
3. Guardiã da resiliência, antecipando crises e fortalecendo comunidades vulneráveis, especialmente diante de eventos climáticos como La Niña.

No Brasil e na Itália, programas com esse enfoque já transformam comunidades rurais, integrando sustentabilidade, inovação e neutralização de carbono como pilares de uma nova economia verde.

Um mosaico de esperança
O futuro da FAO será definido pela sua capacidade de inspirar uma revolução solidária. Como disse o diretor-geral Qu Dongyu, “transformação é como um mosaico – requer muitas mãos, cores e imaginação.”

Que a FAO continue a unir essas mãos — de governos, produtores, pesquisadores e cidadãos — para construir um sistema alimentar mais justo, sustentável e ambientalmente neutro.

O mundo observa. E confia que, sob a liderança da FAO, o pão de amanhã será compartilhado por todos.

*Por Renata Bueno, ex-parlamentar italiana e advogada especializada em Direito Internacional

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