Por Jeffis Carvalho
Estamos diante dos olhos de Romy Schneider em primeiríssimo plano no filme La Califfa, de Alberto Bevilacqua. A câmera explora esse belo rosto, mas sua intenção não é a beleza em si, é mesmo o sofrimento ou as marcas que ele deixou nessa mulher batalhadora e sofrida, diante do corpo sem vida do marido, que jaz na praça. Pontuando a cena o que ouvimos é uma melodia que parece reforçar cada sulco que se vê naquela paisagem que Carl Dreyer definiu como o que de mais importante o cinema pode filmar. Que música é essa que lembra os sinos de uma igreja que aos poucos vai exigindo mais e mais nossa cumplicidade com aquele rosto marcado na praça? Podemos tirar o som, a música e deixar apenas as imagens. Tudo, então, parece perder sentido, razão. Não porque a cena seja ruim e a música serve para salvá-la. Ao contrário, a música, esta música, está em simbiose com as imagens para compor um quadro único, belo e forte.
A música do maestro e compositor italiano Ennio Morricone, falecido em 2020, aos 91 anos, nunca foi o que se chama de score, música de serviço, que embala sequências de um filme. Sua música é parte indissolúvel de toda obra cinematográfica que pode contar com o seu talento diferenciado. E podemos constatar e nos emocionar com seu talento e trabalho no belíssimo Ennio, O Maestro que já pode ser visto no streaming. O documentário transcende o simples registro biográfico para se tornar uma imersão profunda no universo criativo de Ennio Morricone, um dos maiores compositores de trilhas sonoras do século XX e início do XXI. Dirigido por Giuseppe Tornatore, cineasta italiano que havia trabalhado anteriormente com Morricone em Cinema Paradiso, o filme é, acima de tudo, uma carta de amor à música e ao talento inesgotável do maestro.
Vemos na tela não apenas a trajetória profissional de Morricone, mas também aspectos pessoais, revelando a complexidade de um artista que, mesmo diante do reconhecimento mundial, jamais deixou de ser um pesquisador incansável dos sons e das emoções. Com uma narrativa envolvente, o filme alterna depoimentos do próprio Morricone com entrevistas de cineastas, músicos e críticos, entre eles Quentin Tarantino, Clint Eastwood, Hans Zimmer e John Williams. São testemunhos que ajudam a dimensionar o impacto da sua obra na história do cinema e da música contemporânea.
Já se disse que Alfred Hitchcock pensava cinematograficamente e, o mesmo, vale para Morricone. O maestro fazia música de forma cinematográfica. Nada em suas composições é gratuito, aleatório, talvez porque ele componha com o olhar e cada nota em sua partitura é como um elemento da mise-en-scène, tal como o são os atores, a cenografia, a luz, os movimentos de câmera que formam o plano. Sua música não é complemento, adorno ou tábua de salvação; é música cinematográfica.
Morricone compôs música para mais de 500 trilhas, em uma carreira de 60 anos. De todo seu imenso, intenso e primoroso catálogo, a sua parceria com o cineasta Sergio Leone (eles foram colegas de ginásio) é a que melhor exprime sua música cinematográfica e explica todo o seu trabalho com outros grandes nomes do cinema, de Sergio Sollima a Brian De Palma; de Bernardo Bertolucci a Roman Polanski; de John Borman a Giuseppe Tornatore; de Terence Malick a Dario Argento; de Elio Petri a Quentin Tarantino.
A originalidade de Morricone faz dele um inovador na utilização de instrumentos pouco usuais, sempre como recurso estético que possa dialogar com a visão do cineasta com quem trabalha. Com Leone, o compositor soube como nenhum outro valer-se do recurso musical primordial, a voz humana, valendo-se dela como o que de fato ela é, um instrumento musical. Com isso, deu a Leone uma música para traduzir a sua ambição estética de conceber o western como uma ópera. Esse procedimento atinge o sublime em Era uma vez no Oeste, de 1968.
Compor música cinematograficamente, com o olhar, permite a Ennio Morricone ser quase sempre um coautor, já que sua música é um amalgama para as intenções dos cineastas com os quais trabalha. Em outras palavras, sua música tem uma vida umbilicalmente ligada aos filmes em que são a trilha sonora. Como no início do texto, tente tirar a música de qualquer um dos filmes que ele assina. E o filme ficará manco, muitas vezes sem sentido.
Por outro lado, se a música tem essa ligação umbilical, como é ouvi-la externamente, fora do filme, em um concerto? Sem o filme, ela perde seu sentido, sua razão de ser e torna-se apenas mais uma composição, uma melodia, uma peça musical? É nesse momento que a música de Morricone mostra, efetivamente, porque é cinematográfica. E isso explica o enorme sucesso obtido por seus concertos orquestrais ao vivo, a sua grande vendagem de discos e a legião de milhões de fãs pelo mundo.
Ao pensar a música já como cinema, e criá-la totalmente em sintonia com a mise-en-scène, em parceria com os cineastas, Morricone opera a façanha de fazer com que sua música, cada melodia, cada canto, cada instrumento diferenciado, cada assobio, traga a quem a ouve em um concerto, imediatamente a cena, a sequência, até mesmo um plano do filme. Com seu olhar musical para a cena cinematográfica, Morricone permite que nosso olhar para sua música, ouvindo-a, resgate a cena em todo o seu esplendor, em toda a sua força e beleza.
Esse resgate vai, inclusive, muito além da cena. E aqui está a absoluta genialidade de Ennio Morricone. Quando ouvimos sua música cinematográfica, não resgatamos apenas a cena em nossa memória. Com ela vem a própria emoção que sentimos quando a vimos no cinema.
Pelos olhos de Morricone, ouvimos e vemos a nossa própria emoção.
O documentário pode ser visto no Prime Vídeo.
E veja (e ouça) também um concerto com a música de Era uma vez no oeste: