Religiosos conseguem garantia de tratamentos alternativos à transfusão de sangue, desde que sejam reconhecidos por médicos
Em decisões recentes que consolidam um importante entendimento jurisprudencial, o Supremo Tribunal Federal (STF) assegurou que pacientes pertencentes às Testemunhas de Jeová têm o direito constitucional de recusar transfusões de sangue por motivos religiosos e, simultaneamente, exigir que o Sistema Único de Saúde (SUS) ofereça e financie tratamentos médicos alternativos compatíveis com suas convicções religiosas.
Os casos analisados pela Suprema Corte envolveram ações judiciais movidas por pacientes que buscavam garantir o acesso a procedimentos médicos que não utilizassem hemotransfusão. Em um dos processos mais emblemáticos, o STF determinou que a União, o Estado do Amazonas e o município de Manaus deveriam garantir e financiar integralmente tratamentos alternativos para um paciente que necessitava de intervenção médica, mas recusava a transfusão sanguínea em razão de sua fé.
O entendimento dos ministros fundamentou-se na interpretação de que o Estado brasileiro, sendo laico, deve respeitar as diferentes crenças religiosas e, sempre que possível, garantir alternativas terapêuticas que não violem a consciência e a fé dos cidadãos, desde que tais procedimentos sejam reconhecidos pela comunidade médica como seguros e eficazes.
Liberdade religiosa e direito à saúde
Em outro caso analisado (RE 979.742), a União questionava uma decisão judicial que a obrigava a custear uma cirurgia de artroplastia sem transfusão de sangue fora do estado do Amazonas, já que o procedimento não estava disponível localmente com as especificações exigidas pelo paciente. A Procuradoria-Geral da República manifestou-se favoravelmente à pretensão do paciente, defendendo que é dever do Estado arcar com os custos de tratamentos que respeitem a liberdade religiosa.
O julgamento estabeleceu um precedente significativo ao reconhecer que a liberdade religiosa e o direito à saúde não são princípios constitucionais mutuamente excludentes. Pelo contrário, o STF entendeu que cabe ao poder público encontrar soluções que harmonizem esses direitos fundamentais, permitindo que o cidadão receba tratamento médico adequado sem comprometer suas convicções íntimas.
Especialistas em direito constitucional consideram que esta jurisprudência representa um avanço importante no reconhecimento do pluralismo religioso na sociedade brasileira e da necessidade de políticas públicas de saúde que contemplem a diversidade de crenças e valores morais dos cidadãos.
Impactos práticos para o sistema de saúde
As decisões do STF têm implicações diretas para a gestão do SUS, que precisará adequar seus protocolos e garantir a disponibilidade de alternativas às transfusões sanguíneas. Entre as técnicas que podem ser utilizadas estão a recuperação intraoperatória de células, o uso de expansores de volume sanguíneo e medicamentos que estimulam a produção de hemácias.
Gestores de saúde consultados pela reportagem indicam que, embora inicialmente possa haver um custo adicional na implementação dessas alternativas, a longo prazo sua disponibilização tende a beneficiar não apenas pacientes Testemunhas de Jeová, mas também outros grupos de pacientes com restrições a hemotransfusões, como aqueles com alergias raras ou risco elevado de contaminação.
A Associação de Testemunhas de Jeová manifestou satisfação com as decisões do STF, destacando que elas representam um reconhecimento do Estado brasileiro à dignidade e aos direitos fundamentais dos aproximadamente 1,5 milhão de fiéis da denominação no país, que historicamente enfrentaram dificuldades para receber atendimento médico compatível com suas crenças.