Quando verdade, liberdade e poder, noções básicas que forjaram a nossa civilização, entram em total degeneração, é inspirador constatar que, sim, ainda há excelente jornalismo e também grande literatura a iluminar nossa compreensão sobre o momento que vivemos. E, quem sabe, para refletir e buscar caminhos, sejam os de defesa, de luta, de procura ou mesmo de resistência.
Afinal, a constatação já é óbvia: estamos em um mundo em total ebulição e sem nenhuma brecha que nos faça crer que toda a transformação atual possa representar mais uma etapa do progresso humano. Muito pelo contrário.
A ameaça da tirania
No livro Autocracia S.A. – Os Ditadores que Querem Dominar o Mundo (Editora Record), a jornalista e escritora norte-americana Anne Applebaum, ganhadora do Prêmio Pulitzer, aponta o primeiro grande risco que pode mesmo nos cegar e impedir que possamos enxergar o real perigo que vem se desenhando neste século. Na introdução do seu livro, ela diz: “Todos temos em mente uma imagem caricata do Estado autocrático. Há um homem mau no topo. Ele controla o Exército e a polícia. Há colaboradores malvados e, talvez, alguns bravos dissidentes”. No entanto, segue a jornalista, “no século XXI, essa imagem tem pouca semelhança com a realidade. Atualmente as autocracias são governadas não por um cara malvado, mas por sofisticadas redes escoradas em estruturas financeiras cleptocráticas, um complexo de serviços de segurança – militares, paramilitares, policiais – e especialistas em tecnologia que fornecem vigilância, propaganda e desinformação”.
Esse perigo – real, imediato e cada vez mais tentacular – não se dá em alguma sala secreta, “como nos filmes de James Bond”, lembra Applebaum. Muito pelo contrário, ele se materializa em “autocratas modernos que se autointitulam comunistas, monarquistas, nacionalistas e teocratas”. A conclusão desses tempos sombrios, na expressão da filósofa Hannah Arendt (1906-1976), é que em vez de ideias, afirma a jornalista, “os tiranos que lideram a Rússia, China, Irã, Coreia do Norte, Venezuela, Nicarágua, Angola, Mianmar, Cuba, Zimbábue, Mali, Bielorússia, Sudão, Azerbaijão e talvez outras três dezenas de países compartilham a determinação de privar seus cidadãos de qualquer influência ou voz pública reais, de resistir a todas as formas de transparência ou prestação de contas e de reprimir qualquer um, no âmbito doméstico ou internacional, que os desafie”.
Verdade X Liberdade
O subtítulo acima é, na verdade, o título que a escritora e colunista Tatiana Salem Levy deu ao seu texto no Valor sobre O Colibri (Autêntica Contemporânea), mais recente livro de Sandro Veronese, premiado escritor italiano. Tatiana dá ênfase à parte final do romance, quando o narrador, ao resumir a vida da neta do protagonista, mostra que ela é uma importante lutadora na guerra feroz entre verdade e liberdade.
Essa guerra que emerge no final do livro pode nos fazer refletir sobre o que muita gente anda defendendo sob o pretexto da liberdade e que se torna uma terrível antagonista da verdade. Em seu texto, Tatiana destaca, em sua própria definição, um longo trecho do romance. Nele, pela voz do narrador, somos alertados que a liberdade “já foi transformada em um conceito hostil, que arreganha os dentes e é imperdoavelmente plural – as liberdades, as infinitas liberdades nas quais essa palavra terá sido desmembrada; (…) liberdade de não se submeter às leis que nos desagradam, de não respeitar os valores fundamentais, a tradição, as instituições, o pacto social, os acordos assumidos no passado; liberdade de não nos rendermos diante das evidências; liberdade de nos insurgimos contra a cultura, contra a arte e contra a ciência; (…) de não vacinar; (…) de não acreditar nos fatos documentados e, em vez disso, liberdade de acreditar nas notícias falsas e produzi-las; (…) liberdade de ser cruel, incorreto, egoísta, ignorante, homofóbico, antissemita, islamofóbico, racista, negacionista, fascista, nazista”.
Liberdade para negar a verdade. Alguma semelhança com o que andamos ouvindo por aí?
Jeffis Carvalho é jornalista, roteirista e editor de Cinema do Estado da Arte, do Estadão.
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