Em discurso contundente, magistrado critica “lavagem cerebral” das plataformas e afirma que internet “não é terra sem lei” no Brasil
O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes fez duras críticas às big techs durante sua participação no encerramento da 13ª edição do Fórum Jurídico de Lisboa, na sexta-feira (4). Em discurso contundente, o magistrado acusou as plataformas digitais de realizarem uma “lavagem cerebral” para fazer a população acreditar que “tudo é liberdade de expressão” e defendeu a regulamentação das redes sociais como medida urgente para proteger a democracia.
Durante painel sobre regulação de big techs, Moraes questionou: “Qual rede social nós queremos para os nossos filhos? Qual rede social nós queremos para a nossa democracia? Quais redes sociais nós queremos para o nosso país?”. Para o ministro, a partir da resposta a essas perguntas, “nós podemos tomar diversos caminhos”.
“Não somos obrigados a respeitar essa porcaria”
Um dos momentos mais impactantes do discurso foi quando Moraes exibiu mensagens com conteúdo racista, nazista e de ódio contra minorias para exemplificar o que considera falha na autorregulação das plataformas. Ao mostrar conteúdos ofensivos, o ministro foi enfático: “Não somos obrigados a respeitar essa porcaria”.
O magistrado questionou por que comportamentos inaceitáveis no mundo físico são tolerados no ambiente digital: “Alguém pode falar isso num bar, num restaurante, num emprego, pessoalmente, sem ser responsabilizado? Não pode. Por que pode postar, impulsionar e ter milhões de seguidores?”
Moraes foi particularmente crítico ao tratar de conteúdos que considera inaceitáveis: “Nós podemos tolerar, depois de milhões e milhões de judeus principalmente, mas muitas pessoas mortas na Segunda Guerra, nós podemos tolerar isso como liberdade de expressão?”, disse, referindo-se a conteúdos nazistas.
Crítica à autorregulação das plataformas
O ministro atacou frontalmente o modelo de autorregulação das big techs, afirmando que elas “deixaram se instrumentalizar dolosamente” para organizar a tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023. Segundo Moraes, as plataformas permitiram que fossem divulgados mapas, pontos de encontro e convocações para os atos, inclusive durante a própria invasão.
“No dia 8 de janeiro, permitiram que as pessoas filmassem e chamassem mais gente para invadir a sede dos três poderes”, denunciou o ministro, que exibiu vídeos dos atos para comprovar sua argumentação.
O magistrado revelou que “mais de 400 pessoas foram condenadas” porque “elas mesmas postavam o que estavam fazendo no dia 8 de janeiro e convocando outros manifestantes para intervenção militar, para golpe de Estado”. Segundo ele, isso foi “incentivado pelas redes com a possibilidade” de um “efeito dominó” em vários estados.
Crianças em risco e monetização do caos
Alexandre de Moraes destacou casos extremos que considera o “ápice da falência da autorregulação”: crianças e adolescentes morrendo devido a desafios perigosos incentivados nas redes sociais. “Crianças e adolescentes morrendo porque são incentivados, induzidos, eu diria até auxiliados para desafios de autolesão, de sufocamento, de aerosol, de spray, de desodorante”, denunciou.
O ministro criticou duramente a monetização desses conteúdos: “Infelizmente, essas notícias, discursos de ódio, imagens que chocam, geram muito mais monetização para ganhar dinheiro e para induzir politicamente as pessoas”.
Como exemplo internacional, citou o caso da Austrália, onde o primeiro-ministro “precisou determinar que essa rede bem conhecida de todos nós” – em referência ao X (antigo Twitter) – retirasse vídeos de um padre sendo assassinado que a plataforma “ficava monetizando e divulgando”.
Algoritmos direcionados e poder concentrado
Uma das principais críticas de Moraes foi direcionada aos algoritmos das plataformas, que segundo ele não são neutros. “As big techs não são neutras. Elas têm lado, têm religião, têm opção econômica, opção política”, afirmou.
O ministro explicou como os algoritmos funcionam de forma direcionada: “Quando você é crítico das redes sociais e você consulta o seu nome, vem sem notícias ruins. Até achar uma boa, a pessoa cansou. Quando você é a favor das redes sociais, só vem notícia boa quando consulta o nome da pessoa”.
Moraes alertou para a concentração de poder: “Nunca na história da humanidade tanto poder econômico e político esteve tão concentrado na mão de pouquíssimas pessoas que desrespeitam as jurisdições e desrespeitam a soberania dos países”.
Intimidação ao Congresso Nacional
O ministro revelou episódio específico de pressão das big techs sobre o Poder Legislativo. Segundo ele, quando se pretendeu votar em regime de urgência um projeto de lei sobre regulamentação das redes sociais, “as big techs fizeram um texto jogando a população contra os deputados e mandando-lhe algoritmos para cada local onde era a base eleitoral desse deputado”.
“Intimidaram o Congresso Nacional”, denunciou Moraes, acrescentando que o então presidente da Câmara, deputado Arthur Lira, “solicitou a abertura de um inquérito para investigar essas big techs”.
Liberdade com responsabilidade
Ao longo do discurso, o ministro fez questão de distinguir liberdade de expressão de discurso de ódio. “Nós jamais podemos confundir liberdade de expressão com liberdade de agressão, com liberdade para insultos, para liberdade para o discurso de ódio, para o racismo, para a misoginia”, afirmou.
Para Moraes, as redes sociais “realizaram uma lavagem cerebral nas pessoas para querer dizer que o que elas fazem é liberdade de expressão”. O ministro defendeu que as plataformas sejam regulamentadas como “todos os outros segmentos da sociedade”.
Precedente histórico e necessidade de regulação
O magistrado argumentou que a falta de regulamentação das redes sociais seria um precedente inédito na história: “Absolutamente nenhuma atividade econômica que repercute em milhões, e no caso, bilhões de pessoas, deixou de ser regulamentada”.
Moraes fez paralelo com outros meios de comunicação: “É possível alguém em um programa de televisão, em qualquer lugar do mundo, esquartejar uma pessoa ao vivo, sem responsabilidade, sufocar uma criança, induzir uma criança a se automutilar? Não. Então, por que é possível nas redes sociais?”
Ameaças futuras à soberania
O ministro alertou para novos desafios tecnológicos que podem ampliar o problema. Segundo ele, as big techs podem no futuro “ignorarem os países e transmitirem com satélites de baixa órbita”, o que representaria um novo ataque à soberania nacional.
Por isso, defendeu a importância das decisões recentes: “O Supremo Tribunal Federal mostrou ao mundo que, pelo menos no Brasil, a internet não é uma terra sem lei”.
Decisões do STF sobre plataformas digitais
O Supremo Tribunal Federal estabeleceu por repercussão geral que plataformas digitais só podem atuar no Brasil se tiverem sede e representante legal no país. A decisão visa garantir que as empresas possam ser responsabilizadas por conteúdos que violem a Constituição.
A tese foi considerada “minimalista” pelo próprio ministro, mas abrange tópicos considerados insuportáveis: pornografia infantil, pedofilia, atentados contra a democracia, crime de racismo e nazismo. Nesses casos, as plataformas devem retirar o conteúdo imediatamente.
A experiência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) durante as eleições de 2022 foi fundamental para a construção dessa jurisprudência, segundo Moraes.