Por Hylda Cavalcanti
Pode parecer lugar comum, mas neste caso não é. A ex-modelo e promotora de eventos Mariana Ferrer, que denunciou ter sido vítima de estupro em 2018 e protagonizou um caso judicial que chamou a atenção do país, conseguiu literalmente, transformar o limão que azedou determinado período da sua vida e lhe deixou marcas profundas em uma grande limonada.
Estudante de Direito, ela utilizou a experiência que sofreu como tema do seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC). Recebeu nota 10 e elogios de várias autoridades e ativistas de direitos humanos. Agora, dá início a uma nova profissão mais do que preparada para defender mulheres que passaram pela mesma situação da qual foi vítima.
O trabalho, apresentado na última semana, na Faculdade Presbiteriana Mackenzie, tem como título “Estupro simbolicamente como crime de guerra à luz do caso Mariana Ferrer: o legado no avanço ao direito das vítimas e seu impacto na sociedade”.
Tratamento às vítimas
Analisa o tratamento dado às vítimas de violência sexual pelo sistema de Justiça, tendo como base sua própria experiência. Foi dedicado por ela a “todas as minhas irmãs e irmãos de luta e dor – as vítimas de violência sexual”, que completou: “Eu acredito em cada um de vocês”.
Conforme explicou Mariana, a defesa da tese representa não apenas a conclusão de uma etapa acadêmica, mas um marco simbólico na sua busca por reconhecimento, reparação e mudança estrutural no tratamento das mulheres que sofrem o mesmo tipo de violência.
Além de discorrer sobre tudo o que lhe aconteceu, a quase advogada apresentou, durante seu trabalho, um depoimento virtual da farmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes – cearense cuja história particular deu origem à Lei Nº 11.340/2006, ou Lei Maria da Penha, que combate a violência doméstica e familiar contra a mulher.
Violência institucional
Durante seu depoimento, Maria da Penha relembrou o momento em que conheceu a então modelo, “ainda abalada e fragilizada”. Afirmou que “o que talvez tenha sido mais cruel foi o que se passou dentro do tribunal, pois em vez de acolhimento, Mariana foi humilhada, constrangida e atacada durante a audiência”. “Ela sofreu uma violência institucional brutal”, enfatizou a farmacêutica.
Maria da Penha qualificou o trabalho de Mariana como “símbolo de resistência e transformação” e afirmou que “a Justiça pode parecer distante e muitas vezes é, mas ela também pode ser conquistada com coragem, com rede de apoio, com denúncia e com mobilização”. Acrescentou com um recado para as mulheres: “Não se calem, procurem ajuda”.
Entenda o caso
Mariana Ferrer denunciou ter sido vítima de estupro durante uma festa em Florianópolis (SC). Segundo relatou à polícia, ela foi dopada e, em razão disso, não conseguiu oferecer resistência. Exames periciais comprovaram que era virgem, na época.
O empresário André de Camargo Aranha foi acusado de estupro de vulnerável e teve a prisão preventiva decretada em primeira instância, mas pouco depois a medida foi revogada pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC).
Em 2020, durante audiência de instrução, que foi filmada, Mariana foi tratada de forma hostil pelo advogado de defesa de André Aranha, Cláudio Gastão da Rosa Filho. O advogado exibiu fotos dela, acusando-a de “dar showzinho” e ainda afirmou: “Deus me livre que meu filho tenha uma mulher como você”.
Indignação nacional
Abalada, a emodelo chorou e pediu respeito ao juiz de Direito Rudson Marcos, que presidia a audiência, mas não conteve os ataques. A posição omissa do magistrado e do promotor causaram indignação nacional, com manifestações do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), e de órgãos como o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
André de Camargo Aranha foi absolvido em primeira e segunda instâncias por “falta de provas quanto à vulnerabilidade da vítima”. O caso subiu para o Superior Tribunal de Justiça (STJ) por meio de um recurso, mas no ano passado, os ministros do STJ mantiveram a absolvição do empresário e rejeitaram o pedido de nulidade da audiência. Afirmaram, na decisão, que “não houve prejuízo processual formal em relação ao caso”.
Lei 14.245
A mobilização social em torno do tema levou à aprovação pelo Congresso, em 2021, da Lei Nº 14.245/21 — batizada como Lei Mariana Ferrer. A legislação proíbe “manifestações ofensivas à dignidade da vítima durante processos judiciais”. Em 2025, o STF declarou inconstitucional “qualquer tentativa de desqualificar vítimas de violência por sua vida sexual pregressa, reforçando o princípio da dignidade da pessoa humana”.
Participaram da apresentação do TCC de Mariana a presidente do Superior Tribunal Militar (STM), ministra Maria Elizabeth Rocha; a juíza auxiliar da presidência do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) Luciana Rocha; o presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) Ubiratan Cazetta e a presidente da União Brasileira de Mulheres (UBM), Vanja Andréa Santos.
A banca examinadora foi composta por Reinaldo Rossano Alves, defensor público do Distrito Federal e coordenador do Núcleo de Execuções Penais; Eneida de Britto Taquary, delegada aposentada e advogada e Catharina Taquary Berino, doutora em Direito e integrante do Observatório das Múltiplas Violências Contra a Mulher da seccional Distrito Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/DF). Uma banca de peso com observadores de peso para uma mulher que há sete anos busca pela reiteração da sua verdade.