Tenho lido muitos artigos doutrinários, editoriais de jornais de grande circulação e posts no LinkedIn com críticas, algumas bastante contundentes, ao projeto de reforma do Código Civil de 2002, em tramitação no Senado Federal desde 31.01.2025. Trata-se do PL 4/2025, de autoria do Senador Rodrigo Pacheco, resultado dos trabalhos de Comissão de Juristas presidida pelo Ministro Luis Felipe Salomão (STJ).
Segundo a “Justificação” que acompanha o PL, ele modifica ou revoga 897 dos 2.063 artigos do Código vigente e ainda propõe a inclusão de outros 300 dispositivos. É uma revisão substancial – para alguns, um novo Código.
Integrantes dos Poderes Legislativo e Judiciário têm se manifestado favoravelmente à necessidade de modernização da lei civil. Nesse sentido, em 01.04.2025, o Senador Rodrigo Pacheco lançou, no Salão Negro do Congresso Nacional, uma coletânea de artigos sobre a reforma do Código Civil na presença do Presidente do Congresso Nacional, Senador Davi Alcolumbre, de Ministros do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, de Congressistas e de inúmeras autoridades, muitos deles declarando apoio expresso à reforma. Os sinais são claros de que o PL tenderá a avançar.
Um projeto de lei é uma obra humana, imperfeita por natureza. É mesmo esperado, portanto, que o PL 4/2025, com tantas e relevantíssimas alterações, necessite de ajustes e aperfeiçoamento. Por essa razão, das críticas ao PL de que tomei conhecimento até agora (não as discutirei neste breve artigo), a mais grave, e realmente preocupante nesta fase embrionária de seu trâmite legislativo, é à celeridade acentuada que alguns procuram a ela imprimir.
O Direito Civil, desde a sua gênese romana, sempre foi marcado por um caminhar constante para as novidades das interações sociais. Na quadra atual da civilização, essa vocação à sua modernização é ainda mais pronunciada. O problema, então, não está na ideia de se atualizar a lei civil. Ela sempre foi e sempre será necessária. O ponto nevrálgico reside no impositivo processo de maturação das propostas de modificação da lei civil, o que demanda reflexão e amplo debate.
A história da codificação civil brasileira é referência obrigatória nesta discussão.
Veja-se o Código Civil de 1916: tratou-se do ponto de chegada de um enorme esforço de Estado, de quase um século desde a Independência, para a criação de um ordenamento civil genuinamente brasileiro. Gigantes de nossa história atuaram diretamente nesse processo, e todos eles tiveram as suas ideias submetidas a ampla discussão.
Por contingências históricas que não cabem ser aqui desenvolvidas, prevaleceu o projeto de Clóvis Beviláqua de 1899. Entregue o projeto ao Governo Campos Sales, este nomeou uma comissão de notáveis presidida pelo Ministro da Justiça, Epitácio Pessoa, que se reuniu algumas dezenas de vezes. Aperfeiçoado, foi então o projeto enviado ao Congresso Nacional. Pontes de Miranda, na obra “Fontes e Evolução do Direito Civil Brasileiro” (Bibliotheca Scientifica Brasileira, Coleção Econômica e Jurídica, Vol. 214, 1928), conta que, na Câmara, foi nomeada “uma comissão de vinte e um membros (um para cada Estado e para o Distrito Federal) a fim de estudar e discutir o Projeto.
Deliberou que, entre a sessão legislativa de 1900 e 1901, fossem ouvidos o Supremo Tribunal Federal, os Tribunais dos Estados, as Faculdades de Direito, os Presidentes e Governadores de Estado, o Instituto dos Advogados [a OAB somente veio a ser fundada em 1930] e os jurisconsultos mais em voga”. No Senado, a Comissão foi presidida por ninguém menos que Ruy Barbosa, passando o projeto por profunda revisão de forma e de fundo, com a aprovação de numerosas modificações. Debates e votações seguiram na Câmara e no Senado, aperfeiçoando ainda mais o projeto, finalmente aprovado em 1915 e sancionado em 1916. Clóvis Beviláqua participou ativamente das etapas acima enunciadas, e teve a ampla oportunidade de defender as suas ideias, muitas das quais prevaleceram.
Em 1941 e em 1963, empreenderam-se novas tentativas de codificação, sob a responsabilidade de grandes juristas. Igualmente, seus projetos foram submetidos a amplo escrutínio público e sofreram críticas. Por razões históricas que aqui também não serão apresentadas, não tiveram seguimento.
O Código Civil de 2002, por sua vez, é fruto de um projeto que veio a público em 1972, redigido por comissão de ilustres juristas e presidida pelo Professor Miguel Reale. Objeto de numerosas críticas, o projeto foi republicado em 1974 com mais de 700 alterações, e finalmente enviado ao Congresso em 1975. O processo legislativo durou 27 anos (muitos dos quais em hibernação), com amplas discussões na Câmara e no Senado, perante os quais foram realizadas audiências públicas com a participação de juristas, advogados, entidades de classe, dentre outros.
Ou seja: na história brasileira, nunca houve um projeto de Código Civil – aprovado ou não – a que não se tenha dedicado análise crítica, reflexão, escuta e debates qualificados. E isso, evidentemente, não se faz com açodamento.
É imensa a responsabilidade do Congresso Nacional de aprovar uma legislação civil moderna e equilibrada, previamente submetida à análise, crítica e sugestões dos mais variados setores da sociedade, capazes de contribuir para o seu efetivo aperfeiçoamento e, consequentemente, o desenvolvimento do país. E tudo isso, frise-se, em momento delicado e desafiador, de forte polarização política.
Está-se diante de oportunidade histórica, de elaboração de um projeto grandioso para o Brasil, a que o Congresso Nacional não há de faltar. Que se cumpram, então, as palavras do Senador Rodrigo Pacheco ao apresentar ao Senado o PL 4/2025:
“Como é próprio do regime democrático, entendemos que, a partir de agora, o projeto seguirá o devido processo legislativo e poderá ser discutido e aprimorado pelos parlamentares, que serão capazes de consolidar quais avanços e alterações precisam ser promovidos para que a nossa legislação de direito civil possa ser adaptada às demandas sociais dos tempos em que vivemos”.