Em que exato momento nos perdemos, se é que é possível precisá-lo? O fato é que nos guiamos, sempre, pela ideia e ação da civilização, ou mantemos com ela um elo de permanente evolução. Mas, de repente, acordamos e vemos que um pesadelo se tornou realidade.
Meu colega e grande crítico de cinema português Luís Miguel Oliveira, em sua página no Facebook, sintetizou de forma brilhante a sensação que tomou conta de cada um de nós diante da vitória de Donald Trump na última terça-feira. Nós que, independentemente de ideologias ou preferências políticas, acreditamos na força da democracia contra qualquer tipo de ilusão autoritária. Escreveu Luís Miguel: “Acordamos para um mundo moralmente achatado, em que uma série de coisas que durante décadas tivemos como pilares civilizacionais básicos, (justiça, verdade, ética etc.), “common ground” capaz de harmonizar as mais extremas diferenças ideológicas, deixou de ter qualquer espécie de significado ou consequência. A reincidência não deixa margem para dúvidas: uma grande e crescente parte da população mundial quer um mundo assim, desprovido de pilares civilizacionais básicos”.
O retorno de Trump à presidência dos Estados Unidos assusta um mundo que parece caminhar, cada vez mais, para uma espécie de caos desejado, o que torna tudo ainda mais perigoso. Claro, já vimos quatro anos de mandato dessa figura; mas a sua vitória em 2024 parece demonstrar de forma ainda mais clara o que já se percebia em 2016 quando ele derrotou a favorita democrata Hillary Clinton, que venceu no voto popular mas perdeu no colégio eleitoral. Agora, Trump conquistou um resultado avassalador: venceu nos dois, colégio e quantidade de votos.
Em 2017, ainda atônito com a então surpreendente derrota de Hillary, comprei um livro apontado pela revista Times como um melhores relatos para se entender a vitória de Trump nas eleições presidenciais americanas do ano anterior: Era uma vez um sonho. Nele, um advogado relatava a história de sua família da classe operária do chamado Cinturão da Ferrugem – essa expressão, “Rust Belt” no original, ganhou popularidade nos Estados Unidos na década de 1980 em razão do declínio econômico, populacional e da decadência urbana que atingiram essa outrora poderosa região industrial, cuja economia baseava-se principalmente na indústria pesada. Uma região que concentrava, provavelmente, os primeiros deserdados do celebrado processo de globalização, com sua intensa, e sem freios, transferência de empregos industriais para outros países, porque se acreditava que o capitalismo avançado caminhava para a tal economia do conhecimento. Claro, nesse processo, esqueceram-se de que milhares de trabalhadores seriam deixados à própria sorte.
O advogado, autor deste livro, afirma logo na introdução: “Veja bem, eu cresci pobre, no Cinturão da Ferrugem, numa cidade de Ohio, produtora de aço, que vem perdendo empregos e a esperança, como numa hemorragia, desde quando consigo me lembrar. Tenho, para dizer o mínimo, uma relação complexa com meus pais, um dos quais lutou contra o vício durante quase toda a minha vida. Meus avós, que não terminaram o ensino médio, me criaram e poucos membros da minha família cursaram uma faculdade. As estatísticas dizem que garotos como eu têm pela frente um futuro sombrio: se tiverem sorte, vão conseguir evitar o seguro-desemprego; se tiverem azar, vão morrer de overdose de heroína, como aconteceu com dezenas deles na minha cidadezinha natal só no ano passado”.
O livro foi escrito por J.D. Vance e, claro, o nome agora todos conhecem. Ele é o companheiro de chapa de Trump em 2024 e a partir de 20 de janeiro de 2025 será o vice-presidente dos Estados Unidos.
Corta
Desde a metade da década de 1960, Hollywood é predominante liberal, o que nos Estados Unidos significa ser de esquerda. Durante a década seguinte, o cinema feito lá produziu dezenas de filmes retratando a classe operária, os pobres e mesmo os quase indigentes. A esquerda americana denunciava a situação dos menos favorecidos e já ensaiava um firme engajamento na defesa das chamadas minorias – as mulheres, os negros e a comunidade LGBT. Com o avanço do capitalismo baseado na economia do conhecimento, após a queda do muro de Berlim, os liberais apostaram firmemente na luta identitária.
Acontece que em menos de 20 anos a tal globalização colapsou e a esquerda americana não percebeu que a sua base principal, a classe trabalhadora, estava colapsando junto com a transferência de empregos para outros centros produtores. Ou seja, os liberais – concentrados, claro, no Partido Democrata – foram, então, perdendo terreno. Em 2020, a vitória de Joe Biden impediu a reeleição de Trump, menos por seus méritos e mais pelas atitudes assustadoras do concorrente. Aliás, algo parecido com que vimos aqui na vitória de Lula em 2022.
Agora, Trump volta ainda mais fortalecido, com uma vitória acachapante. Os democratas não conseguem mais dar as respostas adequadas às demandas da maioria da população americana e, assim, abrem espaço para o sucesso das propostas de Trump. O presidente eleito conseguiu, a um só tempo, vender a ideia de que os problemas do país são fruto de um sistema dominado pelas elites, que abandonou o povo; e que ele é a solução antissistema.
O mal-estar
Donald Trump não é apenas um conservador, ou um político de direita autoritário que conseguiu se eleger para o cargo mais poderoso do mundo. Ele representa, acima de tudo, a vitória da falência total dos princípios que fizeram da democracia americana um exemplo para os demais países. Mais do que isso, a sua vitória é a derrota dos valores que forjaram a nossa civilização, como bem lembrou o meu colega crítico. O presidente eleito é a negação desses valores: aposta na mentira como estratégia política e nem se preocupa em disfarçar; não respeita as regras da democracia porque foi derrotado em 2020 e até hoje não reconhece a vitória do oponente; incitou seus apoiadores a invadir o Capitólio, o templo sagrado da democracia americana; e, mais do que nunca, age sem nenhum norteamento ético.
Na semana passada, muitos colunistas americanos, europeus e brasileiros refletiram sobre a vitória de Trump e concluíram que, talvez, estejamos testemunhando, com o fortalecimento da direita, o surgimento de uma nova ordem mundial. Será?
Arriscaria dizer que na verdade podemos estar diante de uma desordem mundial.
PS: o título deste artigo é o mesmo de um famoso livro de Sigmund Freud. Mas o autor não teve nenhuma intenção de produzir uma análise psicanalítica.
Jeffis Carvalho é jornalista, roteirista, e editor de Cinema do Estado da Arte, do Estadão.
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