O Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu nesta quarta-feira (23) o julgamento que definirá os limites para a quebra de sigilo de usuários da internet com base em buscas realizadas em sites de pesquisa. A análise, que ocorre no âmbito do Recurso Extraordinário (RE) 1301250, foi adiada para esta quinta-feira (24), quando os ministros deverão retomar o debate sobre este caso de grande repercussão nacional.
O recurso chegou ao STF após o Google contestar uma ordem judicial expedida no contexto das investigações do assassinato da vereadora Marielle Franco e de seu motorista, Anderson Gomes, ocorrido em março de 2018 no Rio de Janeiro. A empresa questiona a determinação que a obrigou a fornecer dados de todos os usuários que realizaram buscas específicas relacionadas à vereadora e a locais frequentados por ela em determinado período antes do crime.
Trata-se de um julgamento com repercussão geral reconhecida, o que significa que a decisão tomada pelo Supremo estabelecerá parâmetros a serem seguidos por todas as instâncias do Judiciário em casos semelhantes, equilibrando a necessidade de investigação criminal eficaz com a proteção à privacidade e ao sigilo de dados dos cidadãos na internet.
Questões em debate
No centro da discussão está o conflito entre dois valores constitucionais: de um lado, a privacidade e a proteção de dados pessoais, direitos fundamentais cada vez mais relevantes na era digital; de outro, a necessidade de garantir meios eficazes de investigação para crimes graves, especialmente em casos como o de Marielle Franco, que ganhou projeção internacional e cuja elucidação é considerada fundamental para o Estado democrático de direito.
A ordem judicial contestada pelo Google determinava que a empresa fornecesse dados como endereços IP, localizações geográficas e informações de contas de todos os usuários que pesquisaram termos específicos relacionados à vereadora, sua rotina e locais frequentados por ela, em um período próximo ao crime. O buscador argumenta que esse tipo de requisição ampla e genérica, sem individualização de alvos, viola princípios como a presunção de inocência e representa uma vigilância em massa incompatível com o ordenamento jurídico brasileiro.
A Procuradoria-Geral da República, por sua vez, defende a validade da medida, argumentando que em determinados crimes complexos, especialmente aqueles planejados com sofisticação, a quebra de sigilo mais ampla pode ser o único meio de obter elementos probatórios essenciais. O caso Marielle, segundo a PGR, exemplifica uma situação excepcional em que o interesse na elucidação do crime justificaria a medida.
Impactos da decisão
A decisão que será tomada pelo STF tem potencial para estabelecer um importante precedente sobre investigações na era digital, definindo até que ponto as autoridades podem exigir dados de usuários de serviços online sem uma individualização prévia de suspeitos. Especialistas em direito digital ouvidos sobre o caso destacam que o julgamento poderá influenciar investigações criminais em todo o país, especialmente aquelas relacionadas a crimes cibernéticos ou que deixam rastros digitais.
Para empresas de tecnologia que operam no Brasil, como o Google, a decisão também terá impacto direto em suas políticas de proteção de dados e resposta a requisições judiciais. Dependendo do entendimento que prevalecer, as companhias poderão ser obrigadas a adaptar seus protocolos de atendimento a ordens judiciais, possivelmente criando mecanismos específicos para requisições mais amplas em casos excepcionais.
Advogados especialistas em proteção de dados alertam para os riscos de uma interpretação muito elástica dos limites para quebra de sigilo, que poderia abrir precedentes para vigilância em massa sob justificativa de investigação criminal. Por outro lado, autoridades de segurança pública defendem que, sem ferramentas adequadas para investigar no ambiente digital, crimes complexos como o assassinato de Marielle podem permanecer sem solução.
Contexto do caso Marielle
O assassinato de Marielle Franco em 14 de março de 2018, um crime com características de execução, gerou comoção nacional e internacional. A investigação passou por diversos desdobramentos ao longo dos anos, com a prisão dos executores diretos, mas ainda permanece cercada de interrogações quanto aos mandantes e suas motivações.
A inclusão de ferramentas de investigação digital, como a quebra de sigilo de buscas na internet, representou uma inovação nas técnicas investigativas empregadas no caso. Segundo informações divulgadas durante o processo, a análise de dados de usuários que realizaram buscas específicas contribuiu para o estabelecimento de conexões entre suspeitos e para a reconstrução do planejamento do crime.
A importância do caso para a sociedade brasileira amplifica a relevância da decisão que será tomada pelo STF. Ao retomar o julgamento nesta quinta-feira, os ministros terão a missão de estabelecer parâmetros que, ao mesmo tempo, possibilitem investigações eficazes e preservem direitos fundamentais no ambiente digital, cada vez mais central na vida cotidiana e, consequentemente, também no universo criminal.