Por Hylda Cavalcanti
Num momento em que são julgadas ações que envolvem ameaças contra a democracia e debatidas questões como anistia aos culpados por atos antidemocráticos e tentativa de golpe praticados de 2022 até aqui, a Justiça Federal tem dado bons exemplos em relação à ditadura militar. Em especial, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF 3). A Corte tem se destacado pela grande continuidade de julgamentos de ações para reparação de vítimas daquele período.
O TRF 3 ainda não divulgou o levantamento sobre quantas ações sobre o tema foram julgadas nos últimos cinco anos, mas já se sabe no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e entre os TRFs, que de lá saíram algumas das decisões mais emblemáticas do país de 2020 até agora.
O Tribunal tem atuado por maior celeridade em processos que envolvem desde condenação a médicos legistas que se omitiram ao avaliar mortos torturados pela ditadura, como também na busca por identificação de restos mortais de desaparecidos políticos.
Crimes permanentes
Também têm saído de lá decisões relevantes sobre a anistia, reforçando, por meio dos seus magistrados, o entendimento de que crimes como ocultação de cadáveres não são passíveis de serem anistiados, pois se tratam de crimes permanentes.
A Corte ainda homologou acordos e pedidos formais de desculpa a familiares e vítimas da ditadura (entre mortos, perseguidos e torturados). Dentre os acordos, o mais famoso foi o que permitiu a continuidade dos trabalhos de identificação dos restos mortais de desaparecidos políticos enterrados no Cemitério de Perus, em São Paulo.
E em relação aos pedidos de desculpas chamou a atenção o que foi feito como reconhecimento às violações de direitos humanos como um todo, nos governos militares.
Ação contra legista
Uma prova disso foi julgamento realizado em fevereiro deste ano, pela 4ª Seção. Os desembargadores federais que integram o colegiado decidiram negar parcialmente, por maioria, recurso movido pela defesa do legista José Manella Netto, de 85 anos.
Assim, o TRF 3 determinou que ele, apesar da idade avançada, continua a responder criminalmente pelo desaparecimento do corpo do ex-soldado do Exército Carlos Roberto Zaniratto, assassinado em 1969, aos 19 anos, por agentes do Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo (Deops-SP).
Em abril de 2021, Manella Netto foi denunciado pelo Ministério Público Federal (MPF) pelos crimes de falsidade ideológica e ocultação de cadáver, pois, apesar de saber o nome da vítima, fez constar no laudo da necropsia que Zaniratto era desconhecido.
O legista teria ignorado as marcas de tortura no corpo do jovem e atestou que a vítima morreu após ter sido atropelada por um ônibus, confirmando a versão montada pelos policiais que o torturaram por seis dias.
Repercussão geral no STF
A discussão levantada é a mesma que estará na pauta no Supremo Tribunal Federal (STF) em breve quando a Corte Suprema iniciar o julgamento da repercussão geral que vai decidir se a Lei da Anistia pode ser usada para interromper processos criminais que envolvam o desaparecimento das vítimas.
O julgamento poderá destravar o processo contra ex-agentes da repressão envolvidos na morte e no desaparecimento de casos como o do engenheiro e ex-deputado Rubens Paiva, por exemplo.
Na dúvida, a sociedade
No início de junho, outra decisão que chamou a atenção partiu da 5ª Turma do mesmo TRF 3. O colegiado decidiu por maioria, dar provimento a um recurso do Ministério Público Federal (MPF) e receber denúncia contra os médicos Harry Shibata e Antonio Valentini.
Eles são acusados dos crimes de falsidade ideológica e ocultação de cadáver durante o mesmo período. A decisão afasta a aplicação da Lei de Anistia e determina que o juízo de primeiro grau prossiga com a ação penal.
O entendimento que prevaleceu foi que a rejeição da denúncia só deve ocorrer em casos de inépcia formal, falta de pressuposto processual ou ausência de justa causa. Em situações de dúvida quanto ao mérito, deve ser aplicado o princípio in dubio pro societate (na dúvida a sociedade, em latim), que favorece a instauração da ação penal.
Shibata e Valentini são acusados de elaborar laudos necroscópicos falsos sobre as mortes de Sônia Maria de Moraes Angel Jones e Antônio Carlos Bicalho Lana, ocorridas em 1973. A denúncia do MPF havia sido inicialmente rejeitada pela 6ª Vara Federal de São Paulo, sob o argumento de que a punibilidade dos acusados estava extinta pela Lei de Anistia (Lei 6.683/79), que perdoou crimes políticos e conexos praticados durante o período da ditadura militar.
Dano moral coletivo
No campo das reparações uma das decisões da 3ª Região que chamou a atenção foi de janeiro de 2023, pela 7ª Vara Cível Federal de São Paulo, com a condenação de três delegados da Polícia Civil paulistana ao pagamento de indenização no valor de R$ 1 milhão, cada um, a título de dano moral coletivo.
O motivo foi participação direta ou indireta em tortura e mortes ocorridas em dependências do Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI/CODI), na década de 1970. A condenação foi requerida pelo Ministério Público Federal (MPF) em ação civil pública na qual foram transcritos relatos das pessoas submetidas à tortura.
Atuação dos magistrados
A boa performance parte da atuação dos magistrados, cujas composições administrativas mais recentes têm corroborado para isso. Um deles é o desembargador federal Ali Mazloum, relator do processo referente a Manella Netto.
Mazloum tem posição que a decisão de imprescritibilidade não viola o entendimento do STF, que considerou constitucional a Lei da Anistia. De acordo com ele, o crime de ocultação de cadáver só prescreve oito anos após a localização do corpo.
Seu entendimento é de que a ocultação permanece sendo praticada enquanto os restos mortais não forem encontrados. O desembargador, entretanto, rejeita a tese de que os demais crimes cometidos pela ditadura militar não prescrevem, pois argumenta que consistem em crimes contra a humanidade.
Ele tem argumentado, durante os votos que relata, que “a prescrição desses crimes continua, pois o Brasil só transformou em lei interna os tratados internacionais assinados pelo país sobre crimes contra a humanidade depois da Lei da Anistia”.
Questão jurisprudencial
Outro que chama a atenção por sua atuação nesses julgamentos tem sido o desembargador federal Paulo Fontes, cujo entendimento levou o Tribunal a aceitar denúncia contra médicos que atuaram no mesmo período. Fontes levantou uma questão jurisprudencial que terá de ser avaliada posteriormente pelo STF.
“Não há dúvidas de que o Brasil está sujeito à jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos. E a decisão do STF na ADPF 153, que considerou a Lei de Anistia constitucional, não impede o cumprimento da decisão da Corte IDH”, afirmou.
Apesar disso, ele defende que é preciso ser feito um ajuste. Isto porque, em vários casos, regras consideradas incompatíveis com o Pacto de São José da Costa Rica, são permitidas pela Constituição brasileira. “Assim sendo, a Lei de Anistia pode igualmente mostrar-se compatível com a Constituição e incompatível com a Convenção”, explicou o magistrado.
Gravidade do dano
A juíza federal Diana Brunstein tem afirmado nos seus julgados que, em tais casos, é preciso levar em conta a gravidade do dano e a necessidade de reparação histórica.
“O valor estipulado das indenizações por vítimas da ditadura toma em conta, num primeiro momento, o relevante interesse social lesado. Numa segunda fase, as condições financeiras e conduta dos autores dos ilícitos”, frisou ela, sempre atenta nos seus julgados para o que define como “condutas institucionalizadas no âmbito das organizações criadas para a manutenção do regime militar”.