Por Carolina Villela
O Supremo Tribunal Federal (STF) consolidou nesta quinta-feira (22) maioria de nove votos contra a repatriação imediata de crianças e adolescentes ao exterior em casos de violência doméstica contra a mãe. O julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 4245 e 7686, que questionam aspectos da Convenção da Haia sobre sequestro internacional de menores, foi suspenso e será retomado na próxima semana, com os votos do ministro Gilmar Mendes e da ministra Cármen Lúcia.
O relator, ministro Luís Roberto Barroso, foi seguido pelos ministros Flávio Dino, Dias Tóffoli, Cristiano Zanin, André Mendonça, Nunes Marques, Alexandre de Moraes, Edson Fachin e Luiz Fux. Todos compartilham o entendimento de que a violência doméstica contra a genitora deve ser considerada fator de risco também para a criança.
Ministros defendem perspectiva de gênero na análise
O ministro Dias Tóffoli defendeu que nos casos de suspeitas de violência doméstica contra a mãe no país de residência habitual da criança, os indícios já configuram risco suficiente para impedir a repatriação do menor. Sua proposta dispensa a necessidade de provas mais robustas e inclui considerar a perspectiva de gênero, dando “peso diferenciado à palavra da mulher” e reconhecendo as dificuldades específicas enfrentadas pelas vítimas de violência doméstica em países estrangeiros.
Alexandre de Moraes acompanhou a tese de Tóffoli, ressaltando que deve ser levado em conta o machismo estrutural como um dos causadores da violência. O ministro argumentou que o mais importante é a proteção dos direitos fundamentais das crianças e que a mãe precisa ser ouvida nos processos. Moraes votou pela compatibilidade do tratado internacional com a Constituição Federal, mas contra a possibilidade do retorno imediato em casos de indícios de violência doméstica contra a genitora.
André Mendonça reforçou o entendimento ao afirmar que “a violência contra uma mãe, ela também é por si só contra a criança”, destacando que agressões contra a genitora afetam diretamente o menor. O ministro defendeu ainda que a Advocacia-Geral da União (AGU) deve reavaliar sua representação quando verificados elementos de violência contra a criança ou mulher, declarando que “havendo elementos de violência contra a criança ou contra a mulher, entendo que a AGU não teria mais o dever de fazer essa representação”.
Estatísticas alarmantes
O ministro Edson Fachin trouxe dados impactantes ao debate, destacando que 88% dos casos envolvem mulheres que escaparam de situação de risco grave. Fachin ressaltou que, apesar das políticas já adotadas, o índice de violência no Brasil contra as mulheres ainda é alarmante. O ministro também reforçou a proposta para criar mecanismos no exterior para que as vítimas tenham apoio adequado.
O ministro Luiz Fux sugeriu que o juiz possa conceder tutela de urgência para reforçar a proteção da mulher vítima de violência doméstica e que o foro para discutir o caso deve ser o da residência da mãe da criança.
Fux defendeu ainda que a Justiça, ao analisar a ação, possa utilizar as regras da experiência comum em relação a países e culturas que inserem as mães em patamares de discriminação, elemento que deve ser considerado pelo magistrado. Nestes casos, ele ressalta que bastam fatos concretos ou notórios de violência para fundamentar a decisão.
Propostas de mudanças estruturais no sistema
O ministro Nunes Marques defendeu que devem existir não apenas “meros indícios, mas provas robustas da violência”. Ele sugeriu que as embaixadas e consulados devem reforçar o auxílio às mães vítimas de violência doméstica em países estrangeiros e que nestes casos devem ser implementadas audiências online para facilitar o acesso à Justiça.
Nunes Marques também propôs que os juízes federais, responsáveis pela análise de processos de repatriação, devem comunicar a existência de ação sobre posse e guarda do menor, garantindo maior transparência e coordenação entre as diferentes instâncias jurídicas envolvidas.
Flávio Dino acompanhou o relator, mas sugeriu ajustes para garantir que o retorno imediato não exclua o contraditório e a ampla defesa. Dino enfatizou que o juiz deve analisar as exceções previstas na Convenção, reforçando as garantias processuais e propondo mudança na atuação da AGU, argumentando que a repatriação de menores constitui litígio privado.
Medidas práticas e prazos definidos
Dias Tóffoli determinou que a Presidência da República e o Ministério das Relações Exteriores estabeleçam, no prazo de seis meses, protocolo de atendimento, processamento e recebimento de denúncia de violência de gênero contra brasileiras no exterior. O Ministério da Justiça deve levar em consideração o melhor interesse da criança evitando a revitimização, e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) deve atualizar a Resolução 449 de 2022.
O relator Luís Roberto Barroso propôs a criação pelo CNJ de grupo de trabalho especializado com prazo de 60 dias para elaborar resolução que agilize os processos. A proposta inclui a edição de atos normativos pelos Tribunais Regionais Federais para concentrar a competência em varas especializadas da capital e turmas específicas.
A proposta de Barroso prevê ainda a instituição de núcleos de apoio especializado para incentivar a conciliação e práticas restaurativas, além de ajuste no sistema de processos eletrônicos para que casos relacionados à Convenção da Haia recebam selo de tramitação preferencial, garantindo que a decisão final sobre o retorno seja tomada em prazo não superior a um ano.
Contexto jurídico das ações em julgamento
A Convenção da Haia sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças, ratificada pelo Brasil, estabelece mecanismos para o retorno de menores levados ilegalmente de seus países de residência habitual. No entanto, as ADIs questionam interpretações que podem colocar crianças em risco, buscando uma abordagem mais protetiva.
A ADI 4245, apresentada pelos Democratas (atual União Brasil), contesta os decretos que ratificaram a adesão brasileira ao tratado, alegando interpretações equivocadas dos procedimentos de retorno. Já a ADI 7686, proposta pelo PSOL, busca garantir que crianças não sejam obrigadas a retornar ao exterior quando houver suspeita de violência doméstica, mesmo sendo vítimas indiretas.