Francisco, como escolheu ser chamado em homenagem ao santo de Assis, assumiu o papado em março de 2013 com a promessa de uma Igreja “pobre para os pobres” e menos burocrática. Durante seu pontificado, promoveu mudanças significativas na legislação interna da Igreja, algumas delas rompendo com tradições centenárias.
## A Reforma Penal: Combate aos Abusos e à Corrupção
Uma das mais impactantes alterações no Código de Direito Canônico ocorreu em 2021, quando o Papa promulgou a constituição apostólica “Pascite Gregem Dei” (Apascentai o Rebanho de Deus). O documento reformulou completamente o Livro VI do Código, dedicado às sanções penais dentro da Igreja.
A reforma tipificou com maior clareza crimes como abuso sexual contra menores e adultos vulneráveis, corrupção administrativa e ordenações ilícitas. Mais importante ainda, reduziu significativamente a margem de discricionariedade dos bispos na aplicação das penas canônicas, estabelecendo procedimentos mais uniformes e rigorosos.
“Essa foi uma mudança estrutural profunda e necessária”, avalia Dom Alessandro Bianchi, canonista da Pontifícia Universidade Gregoriana. “Francisco entendeu que a credibilidade da Igreja estava em jogo e que era preciso criar mecanismos eficientes para punir os crimes dentro da instituição, especialmente os abusos sexuais.”
## Processos Matrimoniais: Agilidade e Misericórdia
Em 2015, ainda nos primeiros anos de seu pontificado, Francisco revolucionou os processos de nulidade matrimonial por meio do motu proprio “Mitis Iudex Dominus Iesus” (O Senhor Jesus, Juiz Clemente). A medida simplificou drasticamente os procedimentos para a declaração de nulidade de casamentos, tornando-os mais ágeis e acessíveis aos fiéis.
Antes da reforma, os processos de nulidade podiam se arrastar por anos e exigiam obrigatoriamente a confirmação de um segundo tribunal. Francisco eliminou essa necessidade e introduziu um processo mais breve, que poderia ser decidido diretamente pelo bispo diocesano em casos evidentes.
“Foi uma mudança revolucionária que demonstrou a preocupação pastoral de Francisco com os fiéis que viviam situações matrimoniais irregulares”, explica Irmã Maria Consolata, especialista em Direito Canônico. “Sem abrir mão da indissolubilidade do matrimônio como princípio, o Papa trouxe misericórdia para o processo, permitindo que muitos católicos pudessem regularizar sua situação perante a Igreja.”
Essa reforma teve impacto direto na vida de milhões de católicos divorciados, que passaram a ter um processo mais acessível e menos oneroso para analisar a validade de seus casamentos anteriores.
## A Participação Feminina: Quebrando Barreiras Históricas
Um dos aspectos mais progressistas do pontificado de Francisco foi a ampliação do espaço para as mulheres na estrutura eclesiástica. Em janeiro de 2021, o Papa modificou o Código de Direito Canônico para permitir que mulheres pudessem ser formalmente instituídas nos ministérios de leitor e acólito, funções que, embora já fossem exercidas por mulheres na prática, estavam reservadas oficialmente apenas aos homens.
Esta mudança, aparentemente simples, representou um importante reconhecimento do papel das mulheres na liturgia e na transmissão da fé. “A medida não foi apenas simbólica, mas um reconhecimento jurídico de uma realidade que já existia de fato”, observa Dra. Luciana Pereira, teóloga da Pontifícia Universidade Católica.
Em 2023, Francisco deu um passo ainda mais ousado ao criar o ministério do catequista, também aberto às mulheres, com função oficial reconhecida no Direito Canônico. “Foi uma forma de valorizar e institucionalizar o trabalho que as mulheres já realizavam há séculos na transmissão da fé”, complementa Pereira.
## A Polêmica do Rito Tridentino: Tradição versus Renovação
Uma das decisões mais controversas de Francisco no âmbito litúrgico-jurídico foi a publicação, em 2021, do motu proprio “Traditionis Custodes” (Guardiães da Tradição), que restringiu significativamente o uso do rito tridentino, a forma de celebração da missa em latim anterior ao Concílio Vaticano II.
A medida, que revogou disposições mais permissivas de seu antecessor Bento XVI, estabeleceu que a liturgia reformada pelo Concílio Vaticano II é “a única expressão da lex orandi (lei da oração) do Rito Romano”. Com isso, o Papa limitou a celebração da missa em latim a casos específicos, sob autorização expressa do bispo diocesano.
“Esta decisão gerou forte resistência em setores tradicionalistas da Igreja”, analisa o padre Joaquim Santos, historiador eclesiástico. “Mas Francisco estava preocupado com a unidade litúrgica da Igreja e com o uso político que alguns grupos faziam do rito antigo como forma de contestação ao Concílio Vaticano II.”
O impacto dessa medida no Direito Canônico foi significativo, pois alterou o status jurídico de uma forma litúrgica que estava ganhando cada vez mais adeptos, especialmente entre os jovens católicos de tendência conservadora.
## A Reforma da Cúria: Descentralização e Transparência
Talvez a mais ambiciosa das reformas canônicas de Francisco tenha sido a reestruturação da Cúria Romana, concretizada com a constituição apostólica “Praedicate Evangelium” (Pregai o Evangelho), publicada em 2022. O documento substituiu a “Pastor Bonus” de João Paulo II e representou a maior reforma da administração central da Igreja em décadas.
A nova constituição reorganizou completamente os organismos curiais, substituindo as antigas Congregações por Dicastérios e dando igual dignidade jurídica a órgãos tradicionalmente considerados de segunda categoria, como as comissões e os conselhos pontifícios.
“A reforma colocou a evangelização no centro da missão da Cúria, antes mesmo da função doutrinal”, explica o cardeal Giovanni Rossi, membro da Cúria Romana. “Além disso, abriu espaço para que leigos, inclusive mulheres, pudessem chefiar dicastérios, algo impensável no antigo ordenamento.”
Esta medida rompeu com séculos de tradição que reservava os cargos de chefia da Cúria apenas a cardeais e bispos. Sob o novo código, a capacidade de governar não deriva da ordenação sacerdotal, mas da missão canônica recebida do Papa.
## Transparência Financeira: O Fim de Privilégios Históricos
Outra área em que Francisco deixou marca profunda foi na legislação canônica referente às finanças do Vaticano. Em 2020, o Papa publicou um novo código de licitações que obrigou o Vaticano a seguir padrões internacionais de transparência em suas contratações e aquisições.
No mesmo ano, emitiu um motu proprio que reorganizou completamente a gestão dos fundos da Santa Sé, retirando a Secretaria de Estado do controle de investimentos e fundos reservados, que passaram para a supervisão da Secretaria para a Economia.
“Foi uma verdadeira revolução na governança financeira da Igreja”, afirma o economista Paolo Mazzanti, consultor do Vaticano. “Francisco entendeu que a credibilidade da Igreja também passava pela transparência no uso dos recursos financeiros, e isso exigiu mudanças profundas no ordenamento jurídico interno.”
Essas reformas financeiras culminaram em 2021 com o histórico julgamento do cardeal Angelo Becciu por má administração de fundos, um processo sem precedentes na história moderna do Vaticano.
## Sinodalidade: Um Novo Paradigma Jurídico
O princípio da sinodalidade, tão caro a Francisco, também se refletiu em mudanças no Direito Canônico. Em 2018, o Papa publicou a constituição apostólica “Episcopalis Communio”, que reformulou o funcionamento do Sínodo dos Bispos, transformando-o em um instrumento mais efetivo de colegialidade.
A nova legislação deu ao documento final dos Sínodos a possibilidade de se tornar parte do magistério pontifício, caso aprovado pelo Papa, elevando significativamente a importância jurídica dessas assembleias.
“Francisco criou um novo paradigma de governança eclesial”, observa a canonista Dra. Elena Massimi. “A sinodalidade deixou de ser apenas um princípio teológico para se tornar um princípio jurídico com consequências práticas na tomada de decisões dentro da Igreja.”
## Legado e Desafios Futuros
As reformas no Direito Canônico promovidas por Francisco representam uma das facetas mais duradouras de seu pontificado. Ao modernizar a legislação eclesiástica, o Papa argentino buscou tornar a Igreja mais ágil, transparente e próxima dos fiéis, sem comprometer seus princípios fundamentais.
“O legado jurídico de Francisco é imenso e continuará influenciando a Igreja por décadas”, avalia Dom Roberto Carlos, professor de História da Igreja. “Ele soube adaptar estruturas centenárias às necessidades do mundo contemporâneo, mantendo o essencial da tradição católica.”
No entanto, nem todas as reformas foram recebidas com unanimidade. Setores mais tradicionalistas da Igreja criticaram o que consideram um afrouxamento excessivo de normas, enquanto grupos progressistas lamentam que as mudanças não tenham ido além em questões como o celibato opcional ou o acesso das mulheres ao diaconato.
O próximo pontífice, que será escolhido no conclave a ser convocado nos próximos dias, terá o desafio de dar continuidade ou redirecionar esse processo de reforma iniciado por Francisco. O que parece certo é que a Igreja não será mais a mesma após esses quase 12 anos de um pontificado que quebrou paradigmas e modernizou estruturas jurídicas que pareciam imutáveis.
“Francisco transformou o Direito Canônico em um instrumento pastoral a serviço da evangelização, e não um fim em si mesmo”, conclui Dom Alessandro Bianchi. “Esta talvez seja sua maior contribuição: mostrar que as leis da Igreja devem estar a serviço da misericórdia e da inclusão, não da exclusão e do rigorismo.”
Enquanto o mundo católico se despede do Papa que veio “do fim do mundo”, como ele mesmo se definiu no dia de sua eleição, sua visão de uma Igreja mais acolhedora e menos legalista permanece como um desafio e uma inspiração para os 1,3 bilhão de católicos espalhados pelo planeta.