O Judiciário vive hoje um movimento peculiar. Enquanto os Tribunais superiores e órgãos de Controle, como o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), se movimentam para reforçar suas estratégias de modo a reduzir cada vez mais o acervo de processos em tramitação, os advogados se queixam das dificuldades que encontram, há anos, para apresentar recursos nessas Cortes. Há dois pensamentos diferentes e muitas críticas nas avaliações sobre o tema.
De um lado, operadores de Direito e empresas reclamam que as dificuldades para recorrer de processos nos quais atuam e para conseguir mudar decisões têm sido cada vez maiores nos Tribunais superiores.
De outro, há juristas, ministros e até mesmo advogados que destacam a necessidade do aumento da cultura de precedentes, que propicia maior segurança jurídica ao decidir que determinado entendimento passe a valer para todas as ações sobre o mesmo caso — criando uma espécie de filtro para que o processo não seja mais julgado outra vez.
Embora em muitos seminários e encontros acadêmicos, todos se reúnam para defender a importância dos precedentes e súmulas dos Tribunais superiores, nos bastidores e em encontros mais reservados há sempre advogados que demonstram sua insatisfação. E destacam que grandes empresas vivem pressionando seus departamentos jurídicos para que apresentem recursos relacionados a processos nos quais são parte, “até o fim”.
23,18% de rejeições no STJ
Os números falam por si. Dos 66.670 recursos recebidos pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) em 2024 — para citarmos apenas uma das cinco Cortes superiores — 3.100 decisões de não admissão foram formalizadas direto pela assessoria de avaliação de recursos repetitivos. Quer dizer: foram rejeitados logo que protocolados.
Outros 15.451 não foram admitidos depois de chegarem nos gabinetes (23,18% do total). Juntos, ministros relatores não conheceram 18.551 recursos, número que corresponde a 27,83% do total de processos ajuizados no Tribunal no último ano.
Desde 2021, durante um evento online promovido pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a ex-ministra do STJ e ex-corregedora nacional de Justiça Eliana Calmon também faz coro aos operadores de Direito para criticar os filtros. “Está difícil, não apenas para os advogados, mas para todos os cidadãos brasileiros”, disse ela.
“O Poder Judiciário cria filtros para se eximir do julgamento e o STJ tem uma série de súmulas, que nós chamamos súmulas defensivas, que contribuem ainda mais para impedir a admissibilidade dos recursos. Eu digo isto desde o período em que atuava lá”.
“O que mais quero saber é o seguinte: Como é que um ministro pode abstrair fatos, fotos e interpretação de um contrato se não pode sequer fazer a avaliação de uma prova fotográfica que está nos autos e julgar?” criticou Eliana, que definiu a Súmula 7 como “absurda” — súmula que determina que “descabe o recurso especial para simples reexame de provas, ainda que interposto sob invocação de suposta infringência de norma processual”.
Importância dos precedentes
Já o presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), ministro Aloysio Corrêa da Veiga, tem uma explicação mais branda, voltada para a defesa das Cortes superiores apenas como órgãos para avaliar divergências jurisprudenciais.
“Casos iguais precisam ser julgados com decisões iguais. O sistema de precedentes que tem sido adotado pelos Tribunais superiores existe para agilizar os processos e garantir segurança jurídica nos julgamentos. O objetivo é uniformizar a jurisprudência e tentar resolver ao máximo a grande queixa da sociedade em relação ao Judiciário: a morosidade. É preciso que a jurisdição tenha coerência e previsibilidade”, afirmou.
O ministro lembrou que em 2.000, o Judiciário brasileiro tinha um estoque de 100 milhões de ações pendentes de julgamento no total. Os números foram reduzidos, mas mesmo assim, passados 24 anos, o Brasil ainda tem 85 milhões de ações pendentes de julgamento em todo o Judiciário.
“Foram criadas secretarias de aprimoramento, realizadas várias atividades e inovações, mas temos de entender que, se ainda temos esse acervo enorme de ações pendentes, alguma coisa está errada”, frisou.
De acordo com o magistrado, é preciso que haja uma mudança de comportamento e essa mudança tem sido feita a partir das missões dos Tribunais superiores, que antes funcionavam como instâncias recursais, sem cumprir com o seu verdadeiro papel de Corte de precedentes.
“Esses Tribunais acabavam sendo uma Corte diversa, para rejulgar as matérias, quando é preciso estabelecer dentro do Judiciário, que o que consagra esse Poder é o duplo grau de jurisdição, no primeiro e segundo graus”, acentuou.
Para o ministro, qualquer manifestação do Judiciário tem uma característica restritiva, porque haverá naturalmente uma limitação da cognição e da competência. E a função dos Tribunais superiores, de acordo com ele, é garantir efetividade da norma legal no território nacional e retirar a divergência jurisprudencial.
“Essa competência, portanto, é muito bem definida. E não cabe aos Tribunais superiores rediscutir ou julgar uma matéria. Temos a Súmula 7 do STJ e a Súmula 126 do TST, com teores semelhantes. O que precisamos fazer é retirar a divergência jurisprudencial neste país que é um Continente e sempre terá decisões diferentes nas suas mais diversas regiões. Caso igual tem de ter uma decisão igual. Judiciário não é loteria”.
Temas iguais, decisões diversas
Aloysio Corrêa da Veiga lembrou que houve períodos, em Tribunais Regionais do Trabalho, por exemplo, em que num mesmo andar eram julgados na mesma tarde processos sobre o mesmo tema em salas diferentes, de onde saíam decisões diferentes. “Precisávamos ter uma mudança de paradigma e a mudança foi feita a partir dos recursos repetitivos, dos incidentes de assunção de competência e dos Incidentes de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDRs)”.
De acordo com ele, essas ferramentas passaram a dar decisões tomadas com aprofundamento, com tese e força qualificada e obrigatória para, exatamente, criar esse princípio da estabilidade, previsibilidade e segurança.
“E assim foi feito. Para que houvesse uma manifestação maior dentro da área de competência de atuação de cada Tribunal de forma a, em primeiro lugar, retirar a divergência interna. Em segundo lugar, criar garantias de que decisões que fossem de fato adotadas com um aperfeiçoamento, para que a tese tivesse profundidade dentro dessas questões repetitivas”, acentuou.
O ministro afirmou que “caso igual não é caso parecido”. Ou seja, de acordo com ele não há um engessamento. E é preciso que haja exceção mesmo, para que os Tribunais superiores quando for necessário, possam alterar o dogma que está sendo avaliado dentro de um caso igual mas com outras peculiaridades.
“Agora, quanto a aquilo que estamos julgando há anos, da mesma maneira, sem divergências, não há razão para resistência nem de contestação da decisão de primeiro e segundo grau. E com isso vamos retirar os recursos desnecessários. O objetivo é julgar menos e julgar melhor”, pontuou.
Problema sistêmico
Para o advogado Erich Endrillo, o problema é sistêmico. Segundo ele existe atualmente, de fato, uma tradição maior de filtrar os recursos para que os tribunais superiores não se transformem numa terceira instância da Justiça. Endrillo disse concordar que há um funil muito grande para ser admitida a análise de um recurso pelo Judiciário, mas admite que, por outro lado, existe também uma apresentação exagerada de recursos.
“Se o sistema permite que os Tribunais façam julgamentos e o sistema recursal está previsto na lei, ele deve existir. Não podemos dizer que é o advogado que está abusando apresentando seus recursos, mas o que é preciso é entender que não se pode sobrecarregar os Tribunais superiores com recursos sobre causas que se sabe que não resultarão em uma decisão diferente”, pontuou.
Por sua vez, o advogado Marcelo Montalvão considera que o grande desafio enfrentado hoje por Tribunais Superiores, sobretudo o STJ, não está relacionado à dificuldade na admissão dos recursos, mas ao elevado volume de demandas submetidas à Corte.
Uniformização infraconstitucional
“É essencial compreender que a função constitucional do STJ é promover a uniformização da interpretação da legislação federal infraconstitucional, e não atuar como uma simples instância revisora ou terceiro grau de jurisdição. A implementação de filtros mais eficazes é medida necessária para preservar essa vocação constitucional”, afirmou Montalvão.
O advogado Giovanni Fialho, outro que tem muitos processos em tramitação nos Tribunais superiores, entende que os dois lados possuem argumentos válidos. “Existem duas pautas que me chamam a atenção. Em primeiro lugar, temos uma grande litigiosidade e uma linha de pensamento de parte dos advogados de que eles têm o direito absoluto de recorrer. Há o direito do advogado de recorrer sim, mas não há direito absoluto aos recursos”, discorreu.
Por outro lado, em sua avaliação, parte dos advogados acha que os filtros processuais são muitos. “Discordo disso, porque os filtros precisam existir para que haja uma missão específica dos tribunais superiores. Por outro lado, não se pode acumular jurisprudência defensiva com esses filtros”, concluiu.