A dificuldade de ter um recurso aceito no Supremo Tribunal Federal (STF) se tornou um dos maiores desafios enfrentados por advogados de todo o país. Segundo os operadores do direito, a admissibilidade, antes mesmo de avançar para o julgamento, frequentemente esbarra no filtro dos sistemas de inteligência artificial e nos posicionamentos divergentes entre os ministros da Corte.
Dados recentes do STF revelam que apenas 6% dos recursos são providos. De um total de 10.436 decisões analisadas em 2025, somente 626 recursos foram aceitos, enquanto 9.810 – equivalentes a 94% – foram rejeitados.
Barreiras técnicas e formalismos excessivos
Muitos recursos são considerados improcedentes por não cumprirem requisitos formais. Entre os principais critérios, o Recurso Especial deve ser interposto contra uma decisão que resolva uma causa em última instância, que não discuta matérias de fato ou provas, que tenha esgotado as vias ordinárias, que contenha a demonstração da repercussão geral da questão constitucional e que siga os requisitos formais estabelecidos.
No STF, os recursos são divididos em duas classes: os recursais que abrangem o recurso extraordinário (RE), o recurso extraordinário com agravo (ARE) e o agravo de instrumento (AI), além dos recursos internos como Agravo Regimental, Embargos de Declaração, Embargos Infringentes e Embargos de Divergência, e as classes originárias que englobam todas as demais, incluindo os recursos ordinários.
Atualmente, para serem admitidos, os recursos precisam ter reconhecido o regime da repercussão geral – implementado pela Emenda Constitucional n° 45/2004 e regulamentado pelos artigos 1.035 e 1.036 do Novo Código de Processo Civil, conforme a redação dada pela Lei 13.256/2016 .
Críticas ao sistema de filtragem
Para diversos advogados, o problema se concentra no método de análise dos recursos no sistema do STF, especialmente aqueles com repercussão geral reconhecida. A inclusão de processos em listas de julgamento também é apontada como um fator que prejudica a defesa adequada.
Além disso, profissionais do direito também reclamam da demora na análise dos recursos e da agenda sobrecarregada de alguns ministros, dificultando a comunicação e o acompanhamento processual.
Roberta Toledo, advogada criminalista, afirma que a dificuldade de ter um recurso admitido para julgamento ou provido pelo Supremo constitui uma reclamação nacional. Segundo ela, ainda na fase de admissão, o sistema do STF utiliza um filtro baseado em inteligência artificial que rejeita a maioria dos recursos, impedindo que sejam julgados pelos ministros.
Preocupações com o uso da IA e demandas por reformas
A advogada destaca que a fundamentação ou conhecimento jurídico dos recursos tem perdido espaço para a técnica utilizada pelos sistemas automatizados. “Se o advogado não usar uma palavra-chave de admissibilidade, perde a chance de ter o pedido analisado pelos ministros. Precisa saber a técnica para driblar o robô para o recurso ser admitido”, alertou.
Ela reforça a importância de que os recursos sejam ao menos julgados, já que, na maioria das vezes, tratam do descumprimento da jurisprudência do STF pelos tribunais de primeira e segunda instâncias. A advogada defende ainda um posicionamento oficial da Ordem dos Advogados do Brasil sobre o tema: “A gente não vê hoje um movimento institucional forte para reivindicar o cumprimento da Constituição e da legislação”.
David Metzker, advogado criminalista e pesquisador, também expressa preocupação com o uso da Inteligência Artificial: “Sou entusiasta da inteligência artificial, mas não há como deixar somente à critério da IA, não podendo determinar a admissibilidade nem decisões”.
Metzker aponta dois principais motivos para a rejeição dos recursos na fase inicial: questões formais e diferentes posicionamentos dos ministros. Segundo sua análise, a Primeira Turma é mais criteriosa nas questões formais durante a admissibilidade dos recursos, enquanto a Segunda Turma tende a ser mais garantista, com decisões mais favoráveis à defesa.
Divergências entre as Turmas e uso de tecnologia
Um levantamento realizado por David Metzker revelou diferenças significativas entre as duas Turmas do STF. A Primeira Turma, que recentemente tornou réus o ex-presidente Jair Bolsonaro e aliados por suposta tentativa de golpe, concede três vezes menos habeas corpus que a Segunda Turma.
De acordo com os dados coletados, durante o ano de 2024 até 27 de março, o STF analisou 22.378 habeas corpus, dos quais apenas 762 foram concedidos (3,41%). O estudo demonstra que os quatro ministros que mais concederam HCs estão na Segunda Turma, evidenciando uma clara divergência de posicionamentos dentro da própria Corte.
Propostas de reforma e críticas de ex-ministro
Para o ministro aposentado do Supremo, Marco Aurélio Mello, o problema está na ampla possibilidade de acesso ao STF através dos recursos extraordinários, levando ao Tribunal questões que não são essencialmente constitucionais. Em sua visão, o Supremo deveria receber apenas os recursos ordinários e mandados de segurança.
“É um sistema errôneo, faz com que pessoas pensem que o Supremo é uma Corte de revisão. No entanto, ele é o guardião da Constituição Federal”, explicou o ex-ministro. Segundo ele, quando a parte não concorda com a decisão do tribunal de origem ou não se conforma com o trancamento da ação, recorre ao Supremo. “Transformaram o Supremo quase numa quarta instância”, afirmou.
O alto volume de recursos também prejudica a jurisdição, sobrecarregando a máquina judiciária e atrasando a entrega da prestação jurisdicional. “Ou se é julgado no bate-pronto, por lista ou de forma virtual. Isso é muito ruim”, ressaltou Marco Aurélio.
Propostas de solução e futuro do STF
Marco Aurélio Mello defende que, para aumentar a celeridade, melhorar o conteúdo das decisões e acabar com o que chamou de controle difuso da constitucionalidade, é necessário reduzir a competência do STF. “O ideal é enxugar a competência e transformar o Supremo em Corte estritamente constitucional. Assim, teríamos um controle único de constitucionalidade e poderia viabilizar uma atuação mais segura e marcante do STF”, concluiu.
Sobre a grande quantidade de recursos, o ministro aposentado foi enfático: “Há uma exacerbação do direito de espernear”. Segundo ele, os advogados são pressionados pelos clientes e, se não recorrerem, “parecem estar fazendo gol contra”.
OAB
Procurada, a Ordem de Advogados do Brasil ainda não se manifestou.