Da redação
A Procuradoria-Geral da República (PGR) estabeleceu uma conexão direta entre a suposta tentativa de golpe de Estado, que teria sido articulada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, e os atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023. Segundo o procurador-geral Paulo Gonet, a invasão e depredação das sedes dos Três Poderes foi o “desfecho violento” e “resultado final da empreitada golpista” que começou a ser tramada ainda em 2021.
A tese da acusação, apresentada durante as alegações finais, deve ser reafirmada durante o julgamento nesta terça-feira (2) na Primeira Turma do STF. A PGR sustenta que os eventos de 8 de janeiro não foram manifestações espontâneas, mas sim o ápice de uma conspiração coordenada pelo núcleo central do governo Bolsonaro. Para a PGR, essa ligação permite enquadrar juridicamente ações da organização criminosa dentro de um “plano maior de ruptura institucional”, ampliando o escopo das acusações contra os oito réus.
Estratégia de desestabilização desde 2021
A Procuradoria argumenta que a organização criminosa vinha atuando sistematicamente desde 2021 para criar um ambiente de instabilidade social que justificasse medidas excepcionais. Segundo Gonet, o grupo conspirador buscava deliberadamente a “eclosão popular” como fator de legitimação para eventuais decretos de estado de sítio ou intervenção militar.
A estratégia teria se intensificado após a derrota eleitoral de Bolsonaro em 2022, quando a narrativa de desconfiança no sistema eletrônico de votação e a animosidade contra os poderes constituídos ganharam força. Para a acusação, essa campanha de desinformação foi determinante para os eventos que culminaram na invasão dos prédios públicos.
O procurador-geral enfatiza que “desde o início de seus atos executórios, a organização criminosa desejou, programou e provocou a eclosão popular”, demonstrando que os acontecimentos de 8 de janeiro estavam dentro do planejamento estratégico do grupo, mesmo que não fossem o objetivo principal inicialmente traçado.
Sofisticação tática revela participação militar
Um dos elementos mais significativos da denúncia da PGR é a identificação do que chama de “surpreendente sofisticação tática” durante os atos de destruição nos prédios públicos. A acusação aponta evidências de que militares especializados, conhecidos como “kids pretos”, estavam infiltrados nos acampamentos e participaram ativamente da invasão.
Segundo o depoimento do colaborador Mauro Cid, esses profissionais com formação em Forças Especiais e treinamento em “operações de guerra irregular” forneceram conhecimento técnico crucial para o prolongamento da ofensiva. A PGR destaca o uso estratégico de equipamentos comuns, como grades transformadas em escadas e mangueiras de incêndio utilizadas para dissipar gases lacrimogêneos.
Essas técnicas de guerrilha urbana, combinadas com a coordenação das ações, levaram a Procuradoria a concluir que se tratava de “uma ação muito mais complexa do que a de um mero improvisado, desconexo e amador levante popular espontâneo”. A participação desses especialistas reforça a tese de que havia planejamento prévio e conexão com setores das Forças Armadas.
Bolsonaro como figura central da conspiração
A PGR posiciona Jair Bolsonaro como o líder ideológico e inspirador direto dos eventos de 8 de janeiro. Segundo a acusação, o discurso radicalizado do ex-presidente, “embasado em fantasias sobre fraudes do sistema eletrônico de votação”, ecoava entre os manifestantes que invadiram os prédios públicos.
Para Gonet, existe “alinhamento ideológico” entre a narrativa construída pela organização criminosa e as palavras de ordem gritadas pelos invasores, que incluíam “código fonte”, “intervenção federal”, “SOS Forças Armadas”, “anulação das eleições” e “Bolsonaro no poder”. Essa coincidência não seria casual, mas evidência da influência direta do ex-presidente sobre os atos.
A Procuradoria sustenta que as “ações e omissões dolosas” de Bolsonaro e seus aliados causaram diretamente o “desfecho devastador” de 8 de janeiro. A tese é que, sem a atuação da organização criminosa na disseminação de teorias conspiratórias e no estímulo à radicalização, os eventos antidemocráticos não teriam ocorrido.
Ressignificação jurídica dos acontecimentos
Um aspecto crucial da estratégia da PGR é como os eventos de 8 de janeiro permitiram “ressignificar” juridicamente ações anteriores do governo Bolsonaro. Segundo a acusação, episódios que antes “poderiam parecer reprováveis apenas do ponto de vista moral ou eleitoral” ganharam nova dimensão criminal quando analisados em conjunto com a invasão dos Três Poderes.
Esta abordagem jurídica permite à Procuradoria conectar diferentes momentos da gestão Bolsonaro em uma narrativa única de conspiração antidemocrática. Declarações, reuniões e articulações que isoladamente poderiam não configurar crime passam a integrar um contexto maior de tentativa de golpe de Estado.
A PGR argumenta que “a trama delitiva ganhou coloridos expressivos” com o desfecho de 8 de janeiro, revelando a densidade e a extensão temporal da conspiração. Essa interpretação amplia significativamente o escopo das responsabilidades criminais atribuídas aos réus do núcleo central.
Fracasso da articulação militar e alternativa radical
Segundo o MPF, o golpe não foi consumado porque não obteve adesão dos comandos do Exército e da Aeronáutica, apesar das tentativas de cooptação em reuniões fechadas. O fracasso na obtenção do apoio militar teria levado o grupo a buscar alternativas para criar instabilidade social que justificasse medidas excepcionais. A estratégia incluía o estímulo a manifestações populares que pressionassem por intervenção das Forças Armadas.
A Procuradoria cita a elaboração de minutas de decretos que previam intervenção sobre o Judiciário, prisões e substituição de autoridades. O órgão menciona ainda a existência de discurso pronto para ser proferido após a consumação do golpe, demonstrando o grau de planejamento da operação. As tentativas de convencimento das autoridades militares teriam sido coordenadas pelos integrantes do núcleo central da organização criminosa.
Para Gonet, o 8 de janeiro “pode não ter sido o objetivo principal do grupo, mas passou a ser desejado e incentivado, quando se tornou a derradeira opção disponível”.
A mudança de estratégia teria mantido o mesmo objetivo final: provocar uma situação de caos que justificasse medidas excepcionais e a eventual intervenção das Forças Armadas. Mesmo com métodos diferentes, o propósito de derrubar o governo legitimamente eleito permaneceu constante, segundo a tese da acusação.
Responsabilização coletiva do núcleo central
A PGR sustenta que todos os integrantes do “núcleo crucial” tinham conhecimento do projeto autoritário e contribuíram ativamente para sua execução. Segundo a acusação, houve “divisão de tarefas” entre os integrantes, com cada um utilizando sua posição no governo ou nas Forças Armadas para avançar os objetivos da organização criminosa.
O procurador-geral afirma que “todos aderiram à organização criminosa cientes do que defendia Jair Bolsonaro e contribuíram, em divisão de tarefas, para a consumação do projeto autoritário de poder”.
Para a Procuradoria, o conhecimento prévio do “intuito de criação do cenário de comoção social” torna todos os membros do núcleo igualmente responsáveis pelo desfecho violento, “na medida da culpabilidade individual”.
Próximos passos processuais
O julgamento na Primeira Turma do STF representa o momento decisivo do processo. A análise detalhada dos atos processuais, das provas colhidas e das teses das defesas será realizada pelos ministros Alexandre de Moraes (relator), Flávio Dino, Luiz Fux, Cármen Lúcia e Cristiano Zanin.
A decisão final sobre condenação ou absolvição será tomada por maioria dos ministros. Em caso de condenação, o colegiado também deverá definir as penas individuais, considerando o grau de participação de cada réu na suposta organização criminosa.
O processo tem repercussão histórica por ser a primeira vez que um ex-presidente da República é julgado criminalmente pelo STF por conspiração contra o Estado Democrático de Direito. O resultado pode estabelecer precedentes importantes sobre os limites do poder presidencial e a proteção das instituições democráticas no Brasil.