A decisão recente da Justiça paulista que negou a anulação de sentença em que um advogado alegou ter sido redigida pela inteligência artificial reacendeu o debate sobre o tema e a importância de regulamentar o uso da ferramenta no Judiciário.
Em 2020, a resolução CNJ nº 332/2020, aprovada pelo Consellho Nacional de Justiça, estabeleceu alguns critérios para a aplicação da IA em geral. No entanto, as regras não abrangem a Inteligência Artificial generativa – tipo que cria novos conteúdos como textos, imagens e vídeos.
Diante do avanço da tecnologia e da necessidade de atualização das normas, o CNJ criou um grupo de trabalho para discutir e elaborar uma proposta de regulamentação da IA generativa na Justiça. O texto da resolução passa por ajustes finais e deve ser apresentado no plenário do Conselho nos próximos meses. As novas diretrizes devem abordar regras de ética, transparência, proteção de dados, segurança da informação, performance, confiabilidade, gerenciamento de riscos e casos de proibição.
Graus de risco
O desembargador do Tribunal de Justiça de Pernambuco Alexandre Freire Pimentel faz parte do grupo de trabalho do CNJ que discute o tema. Especialista e entusiasta da tecnologia aplicada ao Direito, ele destaca o papel da IA: “É um caminho sem volta”. Mas faz um alerta: “A IA generativa nunca deve substituir o juiz humano”.
O magistrado ressalta que a regulamentação da IA generativa no Judiciário deve estabelecer graus de risco de uso de dados. É preciso definir se a ferramenta poderá ser usada em informações sensíveis como ações de guarda de crianças, ações que envolvem adolescentes ou assuntos que tramitam em segredo de Justiça, por exemplo. “O Judiciário é quem tem a prerrogativa de providenciar a proteção dos dados”, afirmou.
Segundo Pimentel, a regulamentação deve estabeceler também se serão adotadas restrições ou proibições. Outro ponto importante é se os juizes poderão usar a IA de empresas privadas. Atualmente, poucos tribunais têm sistemas generativos próprios. “A IA generativa é uma excelente aliada para resolver o excesso de processos com segurança e rapidez, desde que utilizada de maneira supervisionada pelos responsáveis”.
Processos zerados
O desembargador Alexandre Freire Pimentel é responsável por um feito inédito no país. Em setembro do ano passado, ele zerou o acervo de processos de seu gabinete com o auxílio da inteligência articial generativa e dos servidores. Desde então, vem mantendo a marca, com cerca de 400 novos processos concluídos todo o mês.
A ferramenta pesquisa jurisprudência e elabora minutas, que devem seguir o padrão de julgamento do desembargador e precisam ser identificadas com uma etiqueta do sistema PJE. Além disso, o trabalho é supervisionado por servidores e passa por duas revisões antes da checagem final, que é feita pelo próprio magistrado.
Pimentel destaca que um dos sistemas, o Logus, impede o risco de alucinação, quando a IA cria uma jurisprudência inexistente para melhorar o contexto da decisão.
Opinião
Para Melissa Vanini, advogada especialista em inteligência artificial, o uso da ferramenta no Judiciário é algo positivo, desde que seja bem aplicado. Ela defende que, com uma boa regulamentação e cuidado ético, a IA pode transformar a justiça e ajudar a dar conta da enorme demanda.
“Considerando a enorme quantidade de processos no Brasil, que só cresce a cada ano, a IA pode ajudar a dar agilidade e eficiência ao sistema, beneficiando tanto os tribunais quanto a sociedade”.
No entanto, reforça a necessidade de critérios bem definidos, que estabeleçam a IA como ferramenta de apoio, e não como palavra final. Na avaliação da especialista, é indispensável que o magistrado revise e analise cada detalhe do processo com atenção, sem depender exclusivamente de sistemas gerativos para produzir resultados.
“Precisamos garantir transparência em como as decisões são tomadas, além de auditar os dados para evitar vieses ou injustiças. A supervisão humana qualificada também tem que ser mantida”.
Por fim, a advogada também alerta para os riscos: “padronização excessiva das decisões, aplicação acrítica dos padrões, desumanização dos direitos, viés algorítmico e falta de transparência”. E defende a atuação firme de órgãos como o CNJ e OAB para garantir que a IA seja bem utilizada.
IA no judiciário
Segundo o último levantamento do CNJ, em 2024, pelo menos 62 tribunais no Brasil já usavam a Inteligência Artificial ou estavam implementando a tecnologia. Foram mapeados 140 projetos. A maior parte das soluções são desenvolvidas pela Justiça Estadual, seguida pelas justiças Eleitoral, do Trabalho, Federal e Superior.
O Supremo Tribunal Federal, por exemplo, lançou em dezembro de 2024, a Maria, ferramenta de IA que vai atuar no resumo de votos, relatórios em processos recursais e análise de processos de reclamação. Porém, a responsabilidade final continua sendo dos ministros e servidores do STF.
Em janeiro deste ano, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região incorporou uma formação prática em Inteligência Artificial para capacitar 50 novos magistrados.