Patrícia Thury

Adultização e sexualização de crianças: proteção jurídica no pós-Felca, por Patrícia Thury

Há 4 meses
Atualizado sexta-feira, 15 de agosto de 2025

Entenda os desafios jurídicos da proteção de crianças na era digital e o impacto da denúncia de Felca contra a exploração infantil online. Crianças não são mercadoria.

A era digital transformou de forma irreversível as interações humanas, criando possibilidades de expressão e oportunidades profissionais. Mas, a revolução tecnológica também ampliou exponencialmente riscos e formas de exploração. Nesse cenário, a denúncia do youtuber Felca (Felipe Bressanim Pereira) sobre a adultização e exploração de crianças nas redes sociais foi mais do que um alerta: foi um marco que mobilizou milhões e pressionou por mudanças legislativas.

Felca, influenciador da Geração Z, usou sua visibilidade para expor o que chamou de “algoritmo P”: mecanismos de recomendação das plataformas que, sem filtro ético, propagam conteúdos sexualizados envolvendo menores, facilitando a ação de predadores e priorizando o engajamento sobre a segurança. O problema é agravado pela publicidade direcionada e pelo perfilamento comercial de crianças, tema sensível regulado pela LGPD e pelo CONANDA, dada a possibilidade de manipular escolhas e afetar o desenvolvimento.

Casos como o de Hytalo Santos, acusado de sexualizar adolescentes e expor menores a ambientes impróprios, ilustram que a exploração não é isolada, mas parte de uma engrenagem econômica que envolve pais, influenciadores, anunciantes e algoritmos. O sharenting, quando responsáveis expõem filhos para monetização, consolida uma “mercadoria cultural” impulsionada por plataformas e patrocinadores

O chamado sharenting (superexposição digital de crianças), muitas vezes é promovido pelos próprios responsáveis, visando monetização. Casos como os de MC Melody e Bel ilustram como a imagem infantil é convertida em produto cultural e fonte de lucro. Essa lógica de mercado é alimentada por uma engrenagem algorítmica que impulsiona conteúdos mais polêmicos e sensualizados, gerando o que pode ser considerado um “dinheiro sujo”, sustentado pela exploração de vulneráveis.

A normalização dessas práticas é alarmante. O que deveria ser visto como exploração e perversão é, muitas vezes, justificado como “direito à exposição” ou “trabalho digital”, minimizando a gravidade da situação. Essa naturalização impede que a sociedade reconheça a seriedade dos danos e os combata efetivamente

Do ponto de vista jurídico, não há espaço para relativizações. A Constituição Federal (Art. 227) e o Estatuto da Criança e do Adolescente (Arts. 7º, 17, 18 e 100) consagram o princípio da proteção integral, impondo à família, à sociedade e ao Estado o dever de assegurar, com prioridade absoluta, os direitos fundamentais de crianças e adolescentes. Isso inclui a inviolabilidade de sua integridade física, psíquica e moral, bem como de sua privacidade e imagem.

A responsabilidade civil dos pais ou responsáveis, nesse contexto, é inescapável. A exposição indevida de filhos para fins de lucro ou engajamento configura abuso de direito, nos termos do Art. 187 do Código Civil, e enseja reparação civil pelos danos causados, conforme Arts. 932 e 933 do mesmo diploma. Do lado das plataformas, o Superior Tribunal de Justiça já reconheceu que provedores de aplicação podem ser responsabilizados por danos morais em casos que envolvem crianças e adolescentes, mesmo sem ordem judicial prévia, quando devidamente notificados. Esse entendimento prioriza a proteção integral do menor sobre a regra geral do Marco Civil da Internet que exige ordem judicial para remoção de conteúdo.

A Lei Geral de Proteção de Dados (Art. 14) e a Resolução nº 245/2024 do CONANDA impõem obrigações específicas às empresas, como controle parental, filtros e verificação etária, estabelecendo que a proteção digital de crianças e adolescentes não é mera opção de boas práticas, mas um dever legal.

Os danos da superexposição digital vão muito além do campo jurídico. Pesquisas associam esse fenômeno a problemas de saúde mental, como ansiedade, depressão e distorção da autoimagem, bem como ao aumento de riscos concretos, como cyberbullying, assédio e pornografia infantil. O avanço das tecnologias de inteligência artificial agrava o quadro, permitindo a criação de imagens íntimas falsas de menores, um “estupro virtual” com consequências tão devastadoras quanto a violência física.

A responsabilidade é compartilhada. A família deve supervisionar e educar quanto ao uso seguro da tecnologia, as escolas precisam promover a cidadania digital e o Estado tem o dever de criar políticas públicas efetivas, fiscalizar e punir. Organizações da sociedade civil, como a Safernet, e canais de denúncia, como o Disque 100, são ferramentas essenciais para combater violações.

Projetos de lei como o PL 2.628/2022, que exige autorização judicial para atuação de influenciadores mirins, e o PL 3.161/2024, que busca coibir a publicidade infantil digital, representam avanços, mas ainda insuficientes. É preciso atacar o núcleo econômico da exploração, exigir que as plataformas adotem design ético e implementem privacidade por padrão (privacy by design), agindo proativamente na moderação de conteúdo, sem depender de denúncias pontuais para cumprir sua função de proteção.

Defender a infância na era digital é uma tarefa coletiva e inadiável. Como Felca bem lembrou, “nossa não está à venda”. A riqueza de uma nação está na sua juventude, e garantir que ela cresça livre da exploração é um compromisso que deve unir família, sociedade, empresas e Estado em ação permanente.

Autor

  • Patrícia Thury

    Patrícia Thury é Advogada especialista em Direito Civil e Contratos, Vice-Diretora Jurídica da FAJ OAB/DF. Atua com precisão técnica e visão estratégica na prevenção e resolução de conflitos, aliando experiência jurídica, gestão e sensibilidade humana para transformar a forma de fazer justiça.

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