Por Carolina Villela
O Supremo Tribunal Federal (STF) retomou nesta quarta-feira (20), o julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 4245 e 7686, que questionam a aplicação da Convenção da Haia sobre os aspectos civis do sequestro internacional de crianças no Brasil. O ministro Dias Tóffoli votou para ampliar as exceções ao retorno imediato de crianças aos países de origem, defendendo que suspeitas de violência doméstica contra a mãe já configuram risco suficiente para impedir a repatriação, mesmo sem a exigência de provas robustas.
O ministro citou casos de mães brasileiras, vítimas de violência doméstica, que têm sido tratadas como infratoras tanto no Brasil quanto no país requerente, resultando em “inúmeras violações de direitos humanos das crianças e das mães”.
O julgamento foi suspenso para intervalo e será retomado com o voto do ministro Cristiano Zanin, dando continuidade ao processo que já conta com posicionamentos favoráveis à ampliação da proteção de crianças.
Perspectiva de gênero como critério fundamental
O ministro Dias Tóffoli enfatizou a necessidade de adotar perspectiva de gênero na interpretação da Convenção da Haia, alertando que “sem essa perspectiva, corre-se o risco de perpetuar desigualdades e reforçar violências na contramão do avanço civilizatório em matéria de combate à violência doméstica”.
Segundo Tóffoli, deve-se dar “peso diferenciado à palavra da mulher”, reconhecendo as dificuldades específicas enfrentadas pelas vítimas de violência doméstica em países estrangeiros. O ministro propôs que um laudo psicológico seja considerado prova suficiente, dispensando a necessidade de evidências mais robustas.
“Na dúvida deve funcionar sim em favor do direito de guarda do genitor e da integridade da criança”, declarou.
Ele ressaltou que a própria Constituição Brasileira já prevê exceções ao retorno imediato da criança se não for compatível com princípios fundamentais do Estado requerido em relação aos direitos humanos e fundamentais.
Tese jurídica proposta estabelece novos parâmetros
Por fim, Tóffoli julgou parcialmente procedente a (ADI) 4245 e procedente o pedido da (ADI) 7686, propondo a seguinte tese:
1 – conferir interpretação conforme aos artigos 1, 11 e 18 da Convenção para que o retorno imediato do menor e a adoção de medidas de urgência só possam ser determinados após a avaliação das peculiaridades do caso concreto mediante o amplo contraditório a fim de se evitarem graves violações dos princípios da dignidade da pessoa humana e da proteção integral da criança bem como do devido processo legal;
2- conferir interpretação conforme do artigo 12 para que o melhor interesse da criança seja perseguido no caso concreto a despeito da presunção temporal contida no referido dispositivo;
3- conferir interpretação conforme ao artigo 13-b, explicitando que a probabilidade de risco, a suspeita ou evidência de violência doméstica contra a genitora ou a criança transferida ou retida em país diverso da sua residência habitual são situações caracterizadoras de perigos de ordem física ou psíquica ou de submissão de situações intoleráveis do retorno da criança ao país requerente;
4 – conferir interpretação conforme ao artigo 7 “e” e artigo 21 conforme a possibilidade que a União se abstenha de ajuizar diretamente as ações judiciais em caso de probabilidade de risco de suspeita ou de evidência de violência doméstica contra a genitora ou a criança transferida ou retida em país diverso da sua residência habitual, não se excluindo a possibilidade do ente federal contribuir com a abertura de processo judicial intermediando o contato do interessado com escritórios privados de advocacia.
Tóffoli também determinou que a presidência da República e o ministério das Relações Exteriores estabeleçam, no prazo de seis meses, protocolo de atendimento, processamento e recebimento de denúncia de violência de gênero contra brasileiras no exterior; O ministério da Justiça deve levar em consideração o melhor interesse da criança evitando a revitimização e que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) deve atualizar a Resolução 449 de 2022.
Ministro Flávio Dino propõe ajustes na tese
Ao acompanhar o relator da ação, Ministro Luís Roberto Barroso, o ministro Flávio Dino sugeriu alterações na tese apresentada, p-ara constar que o retorno imediato do menor não deve excluir o contraditório e a ampla defesa. Dino enfatizou que o juiz deve analisar e motivar criteriosamente as exceções previstas na Convenção.
O ministro também ressaltou a mudança na atuação da Advocacia-Geral da União (AGU), argumentando que a discussão sobre repatriação de menores se trata de litígio privado. Segundo Dino, a AGU não deve atuar como parte nessas ações, limitando-se aos casos específicos previstos em lei.
Mudanças estruturais propostas para agilizar processos
Na semana passada, o ministro Luís Roberto Barroso, relator das duas ações, já havia votado contra o retorno imediato de crianças e adolescentes aos países de origem quando há indícios comprováveis de violência doméstica, mesmo que não sejam vítimas diretas.
A proposta reconhece que situações de violência doméstica contra a mãe podem configurar risco grave à integridade física e psíquica da criança, mesmo quando o menor não é vítima direta das agressões, desde que existam indícios objetivos e concretos da situação de risco.
Além da interpretação sobre violência doméstica, o voto do relator estabelece uma série de medidas administrativas para aprimorar o sistema judiciário brasileiro na tramitação desses casos complexos. Entre elas:
a – a criação pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), de um grupo de trabalho especializado com prazo de 60 dias para elaborar proposta de resolução que agilize a tramitação das ações de restituição internacional de crianças e assegurar que a decisão final sobre o retorno seja tomada em prazo não superior a um ano;
b – os Tribunais Regionais Federais devem editar atos normativos para concentrar a competência desses processos em varas especializadas da capital e turmas específicas;
c- instituição de núcleos de apoio especializado nos Tribunais Regionais Federais para incentivar a conciliação e adoção de práticas e metodologias restaurativas e atuar como instância de apoio técnico e metodológico ao magistrado;
d- os órgãos do Poder Judiciário devem ajustar junto ao CNJ os sistemas de processos eletrônicos para que todos os casos relacionados à Convenção da Haia recebam selo de tramitação preferencial.
e- determinar ao Poder executivo a adoção de medidas estruturais e administrativas para fortalecer a atuação da autoridade central e determinar ao Poder executivo que avalie a conveniência da adesão à Convenção da Haia.
Questionamentos partidários sobre aplicação do tratado
As ações analisadas pelos ministros foram propostas por dois partidos. O Democratas, atual União Brasil, contesta através da ADI 4245 os decretos que ratificaram a adesão do Brasil ao tratado internacional, alegando que interpretações equivocadas têm sido aplicadas aos procedimentos de retorno de menores.
O partido argumenta que o tratado tem sido mal interpretado especificamente quanto aos procedimentos para garantir o retorno de crianças levadas de seus países de origem sem o consentimento de um ou ambos os genitores. A preocupação central manifestada é com a proteção adequada de menores que podem estar em situação de vulnerabilidade durante este processo.
Por sua vez, o PSOL, através da ADI 7686, busca uma interpretação específica e mais restritiva da Convenção da Haia. O partido pretende impedir que crianças trazidas ao Brasil por um dos pais, sem autorização do outro genitor, sejam obrigadas a retornar ao exterior quando houver suspeita fundada de violência doméstica, mesmo que os menores não sejam vítimas diretas das agressões.
Complexidade internacional e proteção de direitos fundamentais
A Convenção da Haia de 1980 sobre os aspectos civis do sequestro internacional de crianças é um instrumento internacional que visa proteger menores dos efeitos prejudiciais de sua mudança ou retenção ilícitas através das fronteiras nacionais. O Brasil aderiu ao tratado buscando criar mecanismos eficazes para o retorno rápido de crianças ao seu país de residência habitual.
Contudo, a aplicação prática deste instrumento internacional tem gerado controvérsias, especialmente em casos onde o retorno da criança pode colocá-la em situação de risco. O artigo 13-1b da Convenção prevê exceções ao retorno imediato quando existe risco grave à integridade física ou psíquica da criança, ou quando sua devolução a colocaria em situação intolerável.
A interpretação proposta pelo ministro Barroso amplia esta exceção, reconhecendo que situações de violência doméstica contra a mãe podem configurar risco indireto, mas real, para a criança.