Por Carolina Villela
Quatro ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) já votaram para ampliar as exceções ao retorno imediato de menores aos países de origem quando há suspeita de violência contra as mães. O tema é discutido nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 4245 e 7686, que questionam a aplicação da Convenção da Haia sobre os aspectos civis do sequestro internacional de crianças no Brasil.
O relator, ministro Luís Roberto Barroso, foi acompanhado pelos ministros Flávio Dino, Dias Tóffoli e André Mendonça, todos entendendo que a violência doméstica contra a genitora deve ser considerada fator de risco também para a criança. O julgamento será retomado nesta quinta-feira (21) com o voto do ministro Nunes Marques.
Tóffoli defende dispensa de provas robustas
O ministro Dias Tóffoli foi o primeiro a manifestar seu voto nesta quarta-feira (20), dizendo que suspeitas de violência doméstica contra a mãe já configuram risco suficiente para impedir a repatriação do menor, dispensando a necessidade de provas mais robustas.
O ministro citou casos concretos de mães brasileiras vítimas de violência doméstica que têm sido tratadas como infratoras tanto no Brasil quanto no país requerente, resultando em “inúmeras violações de direitos humanos das crianças e das mães”. Para Tóffoli, um laudo psicológico deve ser considerado prova suficiente para caracterizar a situação de risco.
“Na dúvida deve funcionar sim em favor do direito de guarda do genitor e da integridade da criança”, declarou o ministro, enfatizando que a própria Constituição brasileira já prevê exceções ao retorno imediato quando incompatível com princípios fundamentais de direitos humanos.
Perspectiva de gênero como elemento central
Tóffoli enfatizou a necessidade de adotar perspectiva de gênero na interpretação da Convenção da Haia. O ministro alertou que “sem essa perspectiva, corre-se o risco de perpetuar desigualdades e reforçar violências na contramão do avanço civilizatório em matéria de combate à violência doméstica”.
A proposta inclui dar “peso diferenciado à palavra da mulher”, reconhecendo as dificuldades específicas enfrentadas pelas vítimas de violência doméstica em países estrangeiros. Esta abordagem representa mudança significativa na interpretação tradicional do tratado internacional, que priorizava aspectos procedimentais sobre considerações de gênero.
O ministro propôs tese jurídica em quatro pontos principais, estabelecendo que o retorno imediato só pode ser determinado após avaliação das peculiaridades do caso mediante amplo contraditório, explicitando que suspeita de violência doméstica configura situação de perigo para a criança.
Tóffoli também determinou que a presidência da República e o ministério das Relações Exteriores estabeleçam, no prazo de seis meses, protocolo de atendimento, processamento e recebimento de denúncia de violência de gênero contra brasileiras no exterior; O ministério da Justiça deve levar em consideração o melhor interesse da criança evitando a revitimização e que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) deve atualizar a Resolução 449 de 2022.
Dino e Zanin reforçam proteção processual
O ministro Flávio Dino acompanhou o relator, mas sugeriu ajustes para garantir que o retorno imediato não exclua o contraditório e a ampla defesa. Dino enfatizou que o juiz deve analisar e motivar criteriosamente as exceções previstas na Convenção, reforçando as garantias processuais.
Dino também propôs mudança na atuação da Advocacia-Geral da União (AGU), argumentando que a repatriação de menores constitui litígio privado. Segundo o ministro, a AGU não deve atuar como parte nessas ações, limitando-se aos casos específicos previstos em lei.
O ministro Cristiano Zanin seguiu a mesma linha, propondo que seja incluída na tese a possibilidade da Justiça brasileira decidir o mérito do direito de guarda quando reconhecida uma das hipóteses de exceção. Zanin defendeu ainda a criação de parâmetros para orientar juízes e a edição pelo Congresso Nacional de lei específica sobre o rito de cumprimento da repatriação.
Mendonça destaca impacto da violência na criança
André Mendonça afirmou que “a violência contra uma mãe, ela também é por si só contra a criança”, reforçando o entendimento de que agressões contra a genitora afetam diretamente o menor. O ministro destacou a luta das mães e crianças envolvidas na Convenção da Haia, ressaltando que o STF busca encontrar ponto de equilíbrio.
Apesar de ressaltar que a atuação da Advocacia-Geral da União nesses casos é histórica, ele decidiu que a AGU deve reavaliar a representação quando verificados elementos de violência contra a criança ou mulher.
“Havendo elementos de violência contra a criança ou contra a mulher, entendo que a AGU não teria mais o dever de fazer essa representação”, declarou.
Mudanças estruturais no sistema judiciário
Além da interpretação sobre violência doméstica, o relator Barroso estabeleceu uma série de medidas administrativas para aprimorar o sistema judiciário brasileiro na tramitação desses casos complexos. As propostas incluem criação pelo CNJ de grupo de trabalho especializado com prazo de 60 dias para elaborar resolução que agilize os processos.
Os Tribunais Regionais Federais deverão editar atos normativos para concentrar a competência em varas especializadas da capital e turmas específicas. A proposta prevê ainda instituição de núcleos de apoio especializado para incentivar conciliação e práticas restaurativas.
O sistema de processos eletrônicos deve ser ajustado para que casos relacionados à Convenção da Haia recebam selo de tramitação preferencial, garantindo que a decisão final sobre o retorno seja tomada em prazo não superior a um ano.
Partidos questionam aplicação do tratado
As ações foram propostas por dois partidos com objetivos complementares na proteção de menores. O Democratas (atual União Brasil) contesta através da ADI 4245 os decretos que ratificaram a adesão brasileira, alegando interpretações equivocadas dos procedimentos de retorno.
O PSOL, através da ADI 7686, busca interpretação mais restritiva para impedir retorno obrigatório quando houver suspeita de violência doméstica, mesmo que os menores não sejam vítimas diretas.
A Convenção da Haia de 1980 visa proteger menores de mudança ou retenção ilícitas através das fronteiras nacionais, mas sua aplicação prática tem gerado controvérsias quando o retorno pode colocar a criança em risco.