Da redação
O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF) conduziu, nesta segunda-feira (6), a abertura de uma audiência pública para discutir os desafios econômicos e sociais da chamada “pejotização” no país. O decano da Corte e relator do Recurso Extraordinário com Agravo ARE) 1532603 destacou a complexidade do tema e a necessidade de conciliar proteção social e liberdade econômica. A prática da pejotização, que consiste na contratação de trabalhadores como pessoas jurídicas em vez de empregados com carteira assinada, tem gerado debates acalorados sobre seus impactos na previdência social e nos direitos trabalhistas.
Durante a cerimônia de abertura, realizada na sala de sessões da Primeira Turma do STF, participaram autoridades como o subprocurador-geral da República, Luiz Augusto Santos Lima; o advogado-geral da União, Jorge Messias; e o ministro do Trabalho, Luiz Marinho.
Novo contexto exige adaptação de marcos regulatórios
Em sua fala inicial, o ministro Gilmar Mendes ressaltou que o cenário atual impõe ao Poder Judiciário e à sociedade o desafio de reavaliar e adaptar marcos regulatórios, sem perder de vista os fundamentos constitucionais. Segundo o decano, a pejotização reflete mudanças profundas no mundo do trabalho que precisam ser compreendidas em sua integralidade.
“Esse novo contexto, ao mesmo tempo em que fomenta a liberdade de organização produtiva, tem impacto na sustentabilidade do sistema de seguridade social e na arrecadação tributária do Estado. Trata-se de uma equação complexa, que demanda ampla reflexão e diálogo entre os Poderes e a sociedade”, afirmou o ministro. A declaração evidencia a tensão entre a flexibilização das relações de trabalho e a manutenção de direitos sociais historicamente conquistados.
O magistrado enfatizou ainda a importância da escuta qualificada e do diálogo como instrumentos fundamentais na busca por soluções equilibradas. Para Gilmar Mendes, a complexidade do tema exige que todas as vozes sejam ouvidas, desde trabalhadores e empregadores até especialistas e representantes do poder público.
Situação de jovens médicos preocupa Ministério Público
O subprocurador-geral da República, Luiz Augusto Santos Lima, trouxe à tona uma situação específica que ilustra os dilemas da pejotização: a realidade de jovens médicos recém-formados. Segundo Lima, esses profissionais são imediatamente contratados como pessoas jurídicas, inclusive no setor público, mesmo cumprindo jornadas fixas e estando submetidos à subordinação típica de relações empregatícias.
A situação descrita pelo representante da Procuradoria-Geral da República evidencia como a prática pode mascarar vínculos trabalhistas legítimos, privando profissionais de direitos como férias remuneradas, 13º salário, FGTS e benefícios previdenciários. O caso dos médicos é emblemático porque envolve uma categoria de alta qualificação, demonstrando que a questão atravessa diferentes segmentos do mercado de trabalho.
Autoridades alertam para fraudes e “cupinização” de direitos
O advogado-geral da União, Jorge Messias, defendeu a necessidade de estabelecer critérios claros para diferenciar o uso legítimo da constituição de pessoa jurídica daquele destinado a encobrir vínculos empregatícios. Segundo ele, “a ‘pejotização à brasileira’ tem se revelado uma cupinização dos direitos trabalhistas”.
A metáfora utilizada pelo advogado-geral sugere um processo gradual e destrutivo de corrosão das garantias trabalhistas, que ocorre de forma silenciosa mas com efeitos profundos tanto para os trabalhadores quanto para a arrecadação previdenciária. Messias argumentou que essa prática prejudica não apenas o empregado, que perde direitos fundamentais, mas também o poder público, que deixa de arrecadar contribuições previdenciárias e tributos.
O ministro do Trabalho, Luiz Marinho, complementou as críticas apontando especificamente para o desvirtuamento do regime do Microempreendedor Individual (MEI). Criado originalmente para facilitar a formalização de pequenos empreendedores brasileiros, o MEI tem sido utilizado, segundo Marinho, para mascarar contratos de trabalho com todas as características típicas de vínculo empregatício.
Dilema entre modernidade e fraude institucionalizada
Em sua intervenção, Luiz Marinho colocou a questão em termos de escolha civilizatória: “Nossa responsabilidade é decidir se queremos avançar para a modernidade ou oficializar a fraude como normalidade”. A declaração do ministro do Trabalho sintetiza o dilema central que permeia todo o debate sobre a pejotização no Brasil.
De um lado, há argumentos legítimos sobre a necessidade de flexibilização das relações de trabalho, adequação às novas formas de organização produtiva e estímulo ao empreendedorismo. Do outro, pesa a preocupação com a precarização do trabalho, a perda de direitos sociais e o impacto negativo sobre o sistema de seguridade social, que depende das contribuições para sua sustentabilidade.
Homenagem a Peter Häberle marca abertura do evento
Durante a cerimônia de abertura, o ministro Gilmar Mendes prestou uma homenagem especial ao jurista alemão Peter Häberle, falecido nesta segunda-feira. Häberle foi um dos mais influentes constitucionalistas do século XX e autor da teoria da “sociedade aberta dos intérpretes da Constituição”, que revolucionou a forma de compreender o direito constitucional.
A teoria de Häberle rompeu com o formalismo jurídico tradicional ao defender que a interpretação da Constituição não é monopólio dos tribunais e juristas, mas uma tarefa que envolve toda a sociedade.
“É, portanto, especialmente simbólico que façamos este registro em uma audiência pública — instrumento que concretiza, na prática, a visão de uma Constituição interpretada de modo plural, inclusivo e transparente. Häberle nos ensinou que a Constituição não pertence apenas aos tribunais, mas à comunidade de intérpretes que a vivencia cotidianamente”, afirmou o decano do STF.
A audiência pública será retomada às 14h30.