Por Jeffis Carvalho
Há obras que não envelhecem porque nunca foram contemporâneas – sempre foram urgentes. Wozzeck (pronuncia-se ‘ vot sek’) que a OSESP – Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo leva ao palco neste dezembro, é uma delas. Quase cem anos depois de causar tumulto na Berlim de 1925, a ópera de Alban Berg continua incomodando, e nisso reside sua maior virtude: ela não pede licença para existir.
A escolha é, sem dúvida, das mais corajosas da temporada 2025. Thierry Fischer, o maestro titular da OSESP e seu diretor musical, parece compreender o peso do gesto. “A ópera nos ensina a escutar e a interagir uns com os outros de um modo muito diferente”, diz ele, num rasgo de entusiasmo e, quem sabe, otimismo – que a própria obra se encarrega de desmentir. Porque Wozzeck não ensina ninguém a interagir melhor – ela expõe, com crueldade cirúrgica, como falhamos nisso desde sempre. Mas claro, o que o maestro nos propõe é sentir a música e sua força, um petardo na sensibilidade atomizada da nossa era do vazio.
Afinal, a interação a que se refere o regente titular da Osesp é da música com cada um de nós e, claro, da própria orquestra, ou como ele diz, “estar em contato próximo com vozes, com solistas e palavras e respiração e personagens. Isso traz muito para a homogeneidade e flexibilidade da orquestra”. Ou seja, interação.
Explorado, humilhado e traído
A história contada na ópera é simples até doer: um soldado explorado, humilhado, transformado em cobaia (alimentado à força com ervilhas, num experimento médico que hoje nos pareceria cômico se não fosse tão obscenamente verdadeiro), vê sua companheira Marie traí-lo com outro militar. Wozzeck enlouquece. Mata. Morre. Fim. Ou quase – porque Berg não nos oferece o consolo de um desfecho redentor. A brutalidade permanece ali, exposta, sem justificativa moral ou conforto estético.
O texto original nasceu da pena precoce de Georg Büchner, morto aos 23 anos em 1837, antes que sua caligrafia indecifrada e seu conteúdo perturbador encontrassem público. Levou quase quarenta anos para que Woyzeck (com “y”, erro tipográfico que Berg só descobriu tarde demais) chegasse aos palcos. Quando Berg assistiu às apresentações vienenses em 1914, teve a intuição certeira: aquela história pedia música, mas não qualquer música – pedia dissonância, ruptura, abismo.
Atonal, porque é a forma que se impõe
E é aí que a ousadia técnica encontra propósito artístico. Aluno de Schoenberg, Berg aplicou à ópera a linguagem atonal mais radical de seu tempo, mas com arquitetura rigorosa: três atos, cinco cenas cada, formas musicais eruditas sustentando o caos emocional. É como construir uma catedral gótica para abrigar um grito de desespero. Não à toa, entre a encenação da peça original e a ópera de Berg, temos exatamente O Grito, uma das mais famosas pinturas da história da arte ocidental, feita em 1893 pelo artista norueguês Edvard Munch.

Não, a orquestra não ilustra a narrativa – ela é a narrativa, materializando as visões apocalípticas de Wozzeck até se afogar com ele no lago. Curiosamente, essa sofisticação formal nunca distanciou Wozzeck de sua matéria-prima mais crua: a miséria humana, a violência de classe, o colapso psíquico de quem não tem nem o direito de ser escutado. Berg pegou o que havia de mais experimental na vanguarda e devolveu ao público uma tragédia ancestral, vestida com roupas novas mas sangrando o mesmo sangue de sempre.
Ouvir para tentar uma resposta
A pergunta que fica – e que a OSESP faz bem em provocar – é: por que essa obra continua necessária? Talvez porque ainda fabricamos Wozzecks aos montes, cobaias de sistemas que os consomem e descartam. Talvez porque a loucura de um homem pobre traído ainda seja tratada como espetáculo, não como sintoma. Ou talvez, simplesmente, porque insistimos em não escutar – e Berg nos obriga a isso, com sua música que não permite distrações nem concessões.
Metade da plateia berlinense aplaudiu de pé em 1925; a outra metade vaiou com fúria. A divisão era honesta: quem suporta olhar de frente para o próprio fracasso civilizatório?
A OSESP aposta que, em 2025, ainda vale a pena fazer a pergunta. Nos dias 2, 4 e 6 de dezembro, a Sala São Paulo se transforma em laboratório de desconforto necessário. Quem for, não espere catarse – espere confronto.
Wozzeck nunca prometeu consolo. Apenas verdade, nua e dilacerante. Com a música possível.
Você pode assistir ao vivo o concerto de sábado, 6 de dezembro, às 16h30, no Concerto Digital da Osesp, no YouTube.



