Da redação
Em entrevista coletiva concedida logo após ter lido uma carta de despedida durante a sessão plenária do Supremo Tribunal Federal, o ministro Luís Roberto Barroso falou sobre sua decisão de deixar a Corte após doze anos. A fala, repleta de reconhecimento à imprensa, defesa da democracia e confiança no futuro do país, marcou encerramento de um ciclo — mas não a trajetória de contribuição pública.
“Eu queria também agradecer a vocês pelo excelente trabalho ao longo desse tempo de cobertura do Supremo”, iniciou Barroso, dirigindo-se aos jornalistas. “Nós nunca precisamos tanto de uma imprensa profissional, que se mova pela ética e pela técnica jornalística, para restabelecer espaços mínimos de verdade — de fatos comuns — a partir dos quais as pessoas possam formar suas opiniões.”
Segundo ele, o papel da imprensa vai além do noticiário: “Além de ser um negócio privado, a imprensa tem a função essencial de noticiar fatos checados, a partir dos quais as pessoas possam construir opiniões bem informadas.”
O ministro também fez um alerta sobre os efeitos das redes sociais e da desinformação:
“O mundo das plataformas digitais criou narrativas dissociadas da verdade, e a gente precisa fazer com que mentir volte a ser errado de novo. Esse é o grande papel da imprensa: ser plural, porque a vida tem muitos pontos de observação, mas manter a busca pela verdade com boa-fé.”
“Cumpri um ciclo da minha vida”
Barroso explicou que sua decisão de deixar o Supremo amadureceu naturalmente. “Aceitei um convite para estar na instituição Max Planck, na Alemanha, em novembro, e também para dar um curso como professor visitante na Sorbonne, em janeiro. Mas isso foi antes mesmo de pensar na minha vida”, contou.
“Apenas senti, no coração, que cumpri um ciclo da minha vida. A minha trajetória é feita de ciclos, e achei que já tinha feito o que podia fazer. Era hora de abrir espaço para as pessoas que vêm com outras ideias. A vida é assim — a gente precisa saber ceder o lugar na hora certa.”
O ministro destacou o convívio humano dentro da Corte: “Vou sentir falta das ações de amizade e de afeto, das pessoas que se ajudam, que se admiram. Sou alguém que gosta de pensar o Brasil e trabalhar pelo Brasil. Aqui era um espaço para isso, mas não é o único. Fora daqui, tenho até mais liberdade para contribuir no que for possível”.
Conversas com o presidente Lula
Barroso contou que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva “já suspeitava” da decisão:
“Estive com ele no sábado, no show da Maria Bethânia, e disse que precisava conversar sobre um assunto importante — e ele já intuía do que se tratava. O Fachin havia marcado uma audiência para ontem, mas o presidente precisou adiar. Há dois anos, eu já havia comentado com ele essa possível intenção de, após a presidência, deixar uma vaga no Supremo.”
O ministro também elogiou as recentes indicações presidenciais:
“O país tem muitas mulheres competentes, muitos homens competentes — e ninguém é indispensável. O presidente mandou para cá o ministro Cristiano Zanin e o ministro Flávio Dino. Foram duas escolhas excepcionais. Tenho certeza de que ele vai acertar de novo.”
Mais mulheres no Judiciário
Sem citar nomes, Barroso defendeu maior presença feminina nos tribunais superiores:
“Sou um defensor de mais mulheres nos tribunais, como regra geral. No Conselho Nacional de Justiça, implementei a resolução de paridade de gênero nos tribunais de segundo grau. Vejo com simpatia que a próxima escolha recaia sobre uma mulher — embora, claro, haja homens também muito capazes e merecedores.”
O tempo certo de partir
Ao comentar sua saída, o ministro reafirmou uma convicção antiga:
“Desde a Constituinte, sempre defendi o modelo alemão, com mandato de 12 anos. Foi exatamente o tempo que permaneci aqui. Pior do que não ter o modelo ideal é ter um modelo que nunca se consolida. Doze anos é um bom tempo para fazer tudo o que se pode e depois abrir caminho para quem está chegando.”
Barroso destacou que não está “abandonando o Brasil”:
“Sou uma pessoa apaixonada pelo país. Cumprir a Constituição, enfrentar a pobreza, combater a desigualdade, priorizar a educação básica e investir em ciência e tecnologia — tudo isso continua sendo o meu compromisso. Estou saindo do Supremo, mas não do Brasil.”
Sobre a saída e o momento político
Segundo o ministro, o anúncio foi antecipado para conter especulações:
“Pretendia fazer um retiro e anunciar na volta, mas a especulação passou a ser pior do que o fato. Nunca insinuei ao presidente que queria sair, nunca pedi nada. Quero servir ao Brasil como um intelectual público — alguém que pensa o país, sem cargos nem deveres formais.”
Barroso também comentou sanções recentes contra membros da Corte:
“Não sou indiferente ao tipo de sanção que recaiu sobre o ministro Alexandre e sua esposa. Acho que foi um movimento equivocado, baseado em uma narrativa falsa. Precisamos continuar desfazendo essas distorções. Aqui, tudo é feito dentro da Constituição.”
Aborto e sensibilidade institucional
Ao abordar o tema do aborto, Barroso reiterou sua posição histórica:
“Ninguém é a favor do aborto. O papel do Estado é evitá-lo, oferecendo educação sexual, distribuindo contraceptivos e amparando as mulheres em situação adversa. Mas é possível ser contra e não praticar — e isso é diferente de achar que a mulher que passou por esse infortúnio deva ser presa.”
Ele citou estudos da OMS:
“A criminalização não reduz o número de abortos; apenas impede que sejam feitos de forma segura. A sociedade brasileira ainda não entendeu bem essa distinção.”
E ponderou sobre o momento:
“Vivemos tempos delicados, e uma decisão divisiva poderia criar um ambiente mais turbulento. Um juiz não faz apenas o que quer; tem de ter preocupações institucionais — e eu as estou preservando.”
“Ninguém é indispensável”
Sobre sua ausência na Corte, Barroso foi direto:
“Ninguém é indispensável. Vai vir alguém bacana. Uma das coisas boas que conseguimos foi construir um Supremo unido e harmonioso. Ninguém é bom demais, ninguém é bom sozinho. A vida é assim: somos substituíveis — e isso é bom.”
Ele afirmou confiar plenamente no futuro da instituição:
“Espero que o Supremo continue a interpretar adequadamente a Constituição, proteger o Estado de Direito e promover os direitos fundamentais. O tribunal, por natureza, sempre desagrada alguém — e isso faz parte da democracia. O importante é fazer o que é certo.”
Barroso também destacou o papel histórico do STF
“Esse arranjo institucional proporcionou ao país 37 anos de estabilidade democrática — o período mais longo da nossa história. O Brasil sempre viveu entre golpes e contragolpes. É preciso valorizar o que conquistamos: estabilidade e democracia.”
Com serenidade, o ministro encerrou sua fala com um tom de confiança e continuidade:
“Cumpri meu ciclo. Saio do Supremo, mas não saio do Brasil.”