Nesta coluna semanal, costumo falar de filmes, livros, música, concertos e exposições — das manifestações culturais que moldam nosso jeito de ver o mundo. Mas existe uma cultura que precisa ser celebrada com a mesma reverência que dedicamos às artes: a cultura brasileira do empreendedorismo. E não aquela dos palcos iluminados de conferências ou das capas de revista, mas a que pulsa nas estradas, nos aeroportos, nas fronteiras deste país continental. É dela que quero falar esta semana.
Há uma espécie de arte nesse nosso empreendedorismo tupiniquim que fermenta longe dos holofotes da Faria Lima, cresce nas bordas do mapa e floresce justamente onde os grandes centros teimam em achar que nada pode prosperar. Meu amigo Freddy Bilyk, tão paulistano quanto eu, isso numa dessas esperas intermináveis de voo atrasado — daquelas que transformam desconhecidos em companheiros de jornada.
Sentou-se com três jovens. Nenhum passava dos trinta. Todos viajando a trabalho. E cada um carregava na bagagem uma história que desafia aquela narrativa cansada de que “só se faz negócio em São Paulo”.
A primeira era de Montes Claros. Ela e o marido montaram uma empresa de colocação de fundações para usinas fotovoltaicas — aquelas estacas e bases que ninguém vê, mas sem as quais não existe energia solar no Brasil. Filiais em Goiás, Tocantins, Mato Grosso. E porque precisavam de máquinas de perfuração de precisão que não existiam por aqui, abriram uma filial no Paraguai para importar direto da China. Montes Claros virando porta de entrada da tecnologia chinesa. Quem diria.
O segundo rapaz viu sua pequena metalúrgica no interior de Santa Catarina começar a produzir peças para apicultura – coisas simples, funcionais, que abelhas e apicultores precisam. Hoje tem representantes espalhados por todo o país. E não apenas isso: Suriname, Costa Rica, Uruguai, Argentina. De Santa Catarina para a América Latina. As abelhas brasileiras ensinando o mundo a produzir mel.
O terceiro acompanhou a esposa construir um negócio de joias semipreciosas até que a operação ficou grande demais para uma pessoa só. Largou o que fazia e entrou de sócio. Agora gerenciam 250 consultoras de vendas. As joias são fabricadas em Limeira, mas o treinamento? Em Alphaville – porque quando você vende para o Brasil inteiro, São Paulo vira apenas mais um grande ponto de parada.
Meu amigo reparou: todos vaidosos com as roupas, as mochilas, os tênis. Simpáticos, conversadores. Mas com um foco que cortava a conversa quando o assunto desviava. Foco em crescer patrimônio, em expandir territórios de venda, em dominar nichos que os grandes players nem sabem que existem.
Quando ele mencionou o livro do H. Stern para o rapaz das joias, viu as pupilas dilatarem. Aquele brilho de quem reconhece uma referência, de quem estuda os gigantes para um dia chegar lá.
“Você nunca vai trombar com essa turma em São Paulo”, Freddy me disse. “Para começar, paulistano nem conversa com estranho.”, lembrou ele citando nossa amiga Renata Kotscho, também paulistana. E completou com algo que me fez pensar: “Sabe o que eles todos têm em comum? Um horror absoluto pela violência urbana. Quando a coisa aperta aqui, eu penso: se chegar TV, internet e a Amazon entregar, então…”
O rapaz das abelhas começou cruzando a fronteira, abrindo conta no Mercado Livre argentino. Enchia a Saveiro de produtos, atravessava para o outro lado e despachava pelos correios de lá. Hoje tem toda a papelada regularizada, opera com CNPJ nos dois países. Mora a 400 quilômetros da fronteira e transformou essa proximidade em vantagem competitiva. Um representante dele no Norte faz 13 mil reais de comissão por mês.
Existem Brasis que a gente não vê. Enquanto São Paulo discute coworking e rodadas de investimento, tem gente em Montes Claros importando tecnologia chinesa via Paraguai. Enquanto startups paulistanas queimam caixa tentando “disruptar” mercados, tem quem em Santa Catarina já venda para quatro países sem precisar usar pitch deck.
Esses empreendedores não aparecem em rankings da Exame ou da Forbes, não dão entrevista para podcast de inovação, não postam foto no LinkedIn em frente a logo de unicórnio. Mas estão ali, firmes, construindo negócios regionais que viram continentais, provando que o Brasil que funciona — o Brasil que cresce, exporta, gera empregos e riqueza — muitas vezes está longe dos radares de quem acha que só existe um jeito de empreender.
No final, quando o voo finalmente foi chamado, os quatro se despediram. Trocaram cartões, prometeram se falar. Meu amigo ficou pensando no caminho de volta: essa turma não precisa de São Paulo. Mas será que São Paulo não precisa deles?



