Por Jeffis Carvalho
O Ministério Público Federal está atacando a mineração ilegal na Terra Indígena Yanomami por uma frente pouco convencional: o estrangulamento do fornecimento de combustível para aviões de pequeno porte. A estratégia busca cortar a cadeia logística que sustenta o garimpo clandestino ao cobrar fiscalização rigorosa da Agência Nacional do Petróleo (ANP) sobre a venda irregular de combustível de aviação em Roraima.
A abordagem representa uma mudança de paradigma no enfrentamento ao garimpo ilegal. Em vez de apenas reprimir criminalmente os garimpeiros, o MPF decidiu investigar e desmantelar a infraestrutura que torna possível a atividade criminosa em uma das regiões mais remotas do país.
“A ideia foi atuar não apenas de forma reativa, repressiva, mas buscar um trabalho estrutural de prevenção, para evitar que o combustível, que é essencial para a mineração ilegal, chegue até os garimpos”, explica o procurador da República André Porreca, responsável pelo Ofício da Amazônia Ocidental do MPF.
A dimensão do problema
A Terra Indígena Yanomami é o maior território tradicional demarcado do Brasil, com 9,6 milhões de hectares situados entre Amazonas e Roraima. Lar de mais de 30 mil indígenas, a região enfrenta uma escalada dramática da mineração irregular: segundo o relatório “Yanomami sob Ataque”, produzido por associações indígenas em parceria com o Instituto Socioambiental (ISA) em 2022, a atividade cresceu 3.350% entre 2016 e 2021, impactando 3.272 hectares e mais de 16 mil habitantes de 273 comunidades.
Os efeitos devastadores incluem destruição de rios e matas, explosão de casos de malária e outras doenças evitáveis, violência, fome e violações de direitos humanos. O garimpo ilegal foi uma das causas da crise humanitária sem precedentes enfrentada pelo povo Yanomami em 2022, cujas imagens chocantes de fome e morte correram o mundo.
Crime organizado e poder econômico
O perfil do garimpo mudou radicalmente nos últimos anos. Saíram de cena os pequenos garimpeiros artesanais e entraram organizações criminosas equipadas com maquinário sofisticado, armamento pesado e imenso poder econômico. “As organizações criminosas encontraram no garimpo ilegal uma nova forma de autofinanciamento. Trata-se de um crime mais difícil de fiscalizar e de combater, é mais fácil conferir uma aparência lícita aos ativos produzidos e as penas são mais baixas do que as aplicadas para o tráfico de drogas, por exemplo”, explica o procurador Porreca.
Uma única embarcação com draga acoplada para extração de ouro pode custar R$ 5 milhões. Embora não haja estimativas oficiais sobre os valores totais movimentados, apenas em minérios apreendidos pelas autoridades as cifras chegam a R$ 2 bilhões por ano.
Falhas graves na fiscalização
O inquérito civil instaurado pelo MPF em 2023 revelou irregularidades alarmantes. A quantidade de combustível de aviação vendido em Roraima era incompatível com a demanda lícita de aeronaves e empresas de táxi aéreo autorizadas. A investigação descobriu que uma empresa autorizada vendeu quase metade do total – mais de 860 mil litros – para compradores não identificados, contrariando as normas da ANP.
Foram encontrados 13 postos de abastecimento operando sem autorização. A fiscalização deficiente permitia que esses locais continuassem funcionando mesmo após interdição, com lacres sendo rompidos logo após sua aplicação. Empresas autuadas por irregularidades seguiam operando, outras eram geridas por laranjas e adquiriam grandes volumes de combustível. Em um caso, uma vistoria encontrou pista de pouso clandestina e aeronaves com prefixo adulterado.
O Mapa de Movimentação de Combustíveis de Aviação (MMCA), instrumento criado pela ANP para controle diário de volumes de compra e venda, era preenchido manualmente em cadernos, facilitando fraudes. Quando ocorriam, as fiscalizações eram reativas e se limitavam a multas, sem medidas concretas para impedir reincidências.
“A agência, que deveria agir preventivamente e com rigor na imposição de sanções, permitiu a perpetuação de um ciclo de impunidade, ignorando a extensão e a gravidade das infrações cometidas”, registra o MPF em ação civil pública.
Medidas estruturantes
A ação ajuizada em fevereiro deste ano pede que a Justiça obrigue a ANP a adotar medidas estruturantes para melhorar a fiscalização em Roraima. Entre as principais demandas está a criação de um MMCA digital que permita alimentação em tempo real, cruzamento de dados e uso de inteligência artificial para identificar automaticamente aeronaves sem autorização, postos irregulares e pessoas impedidas de comprar combustível.
O MPF requer ainda fiscalização efetiva das operações de venda, aplicação rigorosa do poder de polícia e condenação da agência ao pagamento de R$ 100 mil por danos morais coletivos.
Em abril, a Justiça concedeu liminar determinando que a ANP elabore cronograma de fiscalização e suspenda autorizações de empresas irregulares ou vinculadas ao garimpo ilegal. A medida já impôs limites imediatos à logística do abastecimento clandestino, com impacto direto na cadeia de apoio ao garimpo.
Desafios estruturais
Para André Porreca, a ação se insere em um contexto de carências estruturais crônicas. “Na região Norte, existe uma falha estrutural muito grande, que é a ausência do Estado. Faltam servidores, dinheiro, equipamentos. Falta planejamento consistente. A quantidade de agentes públicos é muito reduzida para uma área geográfica muito grande, que ainda apresenta problemas de infraestrutura e dificuldades de acesso”, explica.
O objetivo final é fortalecer a fiscalização ambiental, proteger os direitos fundamentais dos povos indígenas e mitigar a degradação em área de elevada sensibilidade ecológica, garantindo avanço institucional no enfrentamento de uma atividade criminosa responsável por severos danos à população Yanomami e à floresta amazônica.
O cronograma de fiscalizações já foi compartilhado com o MPF, que agora aguarda o julgamento de mérito da ação para assegurar maior eficiência estatal no combate ao garimpo ilegal na região.
*Com informações do MPF