Em uma era dominada pelo algoritmo e pelo consumo instantâneo, os serviços de streaming assumem, paradoxalmente, o papel de curadores culturais – mas exercem essa função, até o momento, de forma limitada. O que antes exigia a expertise apaixonada do funcionário da locadora, sempre pronto a recomendar aquela pérola esquecida nas prateleiras dos fundos, hoje se resume aos caprichos de licenciamentos comerciais e rotatividade de catálogos. A democratização do acesso, tão celebrada, revela-se uma democracia limitada.
Esta transformação silenciosa converteu cada tela em uma potencial sala de cinema, sim, mas uma sala com programação restrita e mutável. Clássicos atemporais aparecem e desaparecem conforme contratos empresariais, criando uma experiência cultural fragmentada onde a descoberta cinematográfica, mais uma vez, fica refém da lógica de mercado. Neste contexto contraditório, redescobrir obras fundamentais torna-se menos um ato de arqueologia cultural e mais uma corrida contra o tempo – é preciso assistir antes que a licença expire. É neste espírito de urgência e nostalgia que precisamos correr a assistir um grande clássico como O Falcão Maltês (lançado no Brasil como Relíquia Macabra), marco inaugural do essencial cinema noir americano.
Um falcão voa sobre o cinema
No ano em que um jovem cineasta de 24 anos faz sua estréia e revoluciona o cinema, lançando as bases da moderna linguagem cinematográfica, um outro jovem roteirista, filho de um grande ator, faz sua estréia como diretor, adaptando para as telas um dos maiores romances policiais da história, de autoria de um dos mestres da literatura policial, e lança ao estrelato absoluto um dos mitos da história do cinema.
O ano é 1941. Orson Welles faz Cidadão Kane e o filho de Walter Huston, John, faz O Falcão Maltês, do livro homônimo de Dashiel Hammett, com Humphrey Bogart como Sam Spade.
Um ano essencialmente cinematográfico – nas telas e na vida. Quatro dos maiores cineastas da história lançam quatro clássicos do cinema. A Europa ferve pela loucura de Hitler, em dezembro os japoneses atacam Pearl Harbour e os Estados Unidos entram na Segunda Guerra Mundial. Enquanto Welles e John Huston estreiam no cinema, os grandes Charles Chaplin e John Ford lançam O Grande Ditador e Como Era Verde o Meu Vale, respectivamente. Tempos de guerra, quando os homens perdem as noções do bem e do mal; tempos de ambigüidade.
Ford mergulha em suas origens irlandesas e extrai uma ode à simplicidade e à vida, estendendo para além dos seus limites a narrativa clássica. Chaplin penetra na insanidade fascista e destila com humor uma monstruosidade. Welles acha o cinema um brinquedo interessante e traça o perfil de um homem ambíguo, como ambígua é a América, criando um painel da ambigüidade da linguagem cinematográfica – o cinema jamais será o mesmo depois de Kane.
John Huston pega uma novela policial, escreve um dos mais perfeitos roteiros já elaborados, vai para trás das câmeras, convence o estúdio a bancar Humphrey Bogart como astro, encara um pequeno orçamento e lança as bases do film noir, a expressão máxima da ambigüidade da vida e da arte do cinema. O claro e o escuro, a sombra e a luz, o bem e mal se entrelaçam para nos mostrar que somos o que menos parecemos ser. Se há luz, há sombra. E se há sombra no fim da escada, o recorte na penumbra é nossa alma em conflito – amoroso, estético, ético.
Os elementos do filme noir estão todos em O Falcão Maltês. O detetive ambíguo e cínico, procurado por uma mulher ambígua e fatal (Mary Astor); os bandidos cruéis, covardes e sentimentais, como todo ser humano no fundo é ( Sidney Greenstreet e Peter Lorre); a secretária meiga, insinuante e prestativa. E, claro, o jogo de luzes e sombras da fotografia impressa em cada fotograma como se o expressionismo alemão, banido pelo nazismo como arte degenerada, tivesse invadido a América, seduzido o americaníssimo Huston e sua equipe e colocasse em plena Manhattan o doutor Galigari investigando o desaparecimento de uma relíquia valiosa. Não é à toa que o grande ator alemão Peter Lorre, o Vampiro de Dusseldorf de Fritz Lang, encarne aqui o enigmático Joel Cairo, com seus olhos esbugalhados.
Huston tece a trama em idas e vindas, pistas falsas, conclusões equivocadas, comentários cínicos e sarcásticos, para no final nos brindar com uma bela cena do macho – o verdadeiro macho com alma, sentimento e coragem – entregando à Justiça – e por tabela ao julgamento ético e estético – o seu próprio objeto de desejo. O Falcão é uma pequena estátua de Malta. Mas é, principalmente, a ambigüidade, embaralhando os sentidos: é a mulher que é se assim lhe parece; é a América revelando seus conflitos intestinos; e é o cinema em busca de sua expressão, com a textura da imagem revelando-se um quadro em preto-e-branco como nunca antes fotografado. Um falcão voa sobre o cinema e pousa definitivamente em nossas retinas.
*O filme pode ser alugado na Apple TV.