Por Carolina Villela
O ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal (STF) esclareceu que a suspensão da eficácia automática de decisões judiciais, leis, decretos, ordens executivas de Estados estrangeiros em nosso país, não atinge decisões de Tribunais Internacionais. O despacho complementar na (ADPF) 1178 foi publicado nesta terça-feira (19).
“Consigno que as determinações constantes na decisão desta Relatoria, às quais fixam limites à eficácia de decisões emanadas de outros países no Brasil, referem-se exclusivamente àquelas proferidas por tribunais estrangeiros que exigem homologação ou adoção de outros instrumentos de cooperação internacional para a produção de efeitos internos, preservada a jurisdição obrigatória de tribunais internacionais, uma vez reconhecida pelo Brasil, e os efeitos imediatos de suas decisões”.
O ministro destacou que, por meio do Decreto n.º 4.463/2002, o Brasil reconheceu a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) para julgar casos de violações de direitos humanos ocorridas em seu território e que “não há que se falar em ineficácia ou necessidade de homologação de suas decisões para que produza efeitos jurídicos no país”. Dino também ressaltou que não há nada a adicionar em relação às leis estrangeiras e demais atos jurídicos, permanecendo íntegra a decisão proferida em 18 de agosto.
Soberania nacional
Além de esclarecer pontos da determinação, Flávio Dino reafirmou que a medida visa proteger o Brasil – abrangendo suas empresas e cidadãos – de indevidas ingerências estrangeiras. Sem citar a lei Magnitsky, imposta pelos Estados Unidos contra o ministro Alexandre de Moraes, o relator afirmou que a decisão tem o objetivo de garantir segurança jurídica, “pois seria inviável a prática de atos jurídicos no Brasil se – a qualquer momento – uma lei ou decisão judicial estrangeira, emanada de algum país dentre as centenas existentes, pudesse ser imposta no território pátrio”.
Dino completou: “obviamente não se cuida de “escolher o que cumprir”, e sim de uma derivação compulsória do atributo da soberania nacional, consagrado pela Constituição Federal e posto sob a guarda dos Três Poderes da República”.
Decisão invalidou liminar concedida pela justiça estrangeira
Nesta segunda-feira (18), o ministro Flávio Dino tornou sem eficácia, em todo o território brasileiro, uma liminar concedida pela Justiça inglesa em março de 2025. A decisão estrangeira determinava que o Instituto Brasileiro de Mineração (IBRAM) desistisse de uma ação no STF que pedia a suspensão dos contratos firmados entre escritórios ingleses e municípios brasileiros para representação em tribunais estrangeiros.
A medida vale para o caso concreto, que envolve ações de ressarcimento relativas aos acidentes ambientais de Mariana e Brumadinho, em Minas Gerais, mas se estende a todas situações semelhantes. Segundo a determinação, leis estrangeiras, atos administrativos, ordens executivas e diplomas similares não produzem efeitos em relação a pessoas naturais por atos em território brasileiro, relações jurídicas celebradas no país, bens aqui situados ou empresas que atuem no Brasil.
Dino enfatizou que, segundo a Constituição Federal, decisões judiciais estrangeiras só podem ser executadas no Brasil mediante homologação ou por meio de mecanismos de cooperação judiciária internacional, conforme estabelecem os artigos 105, I, “i”, da Constituição Federal, e 26 e 27 do Código de Processo Civil.
Proteção da soberania nacional em contexto internacional complexo
O ministro destacou que o Brasil tem sido alvo de diversas sanções e ameaças, que visam impor pensamentos a serem apenas “ratificados” pelos órgãos que exercem a soberania nacional e que no período de pouco mais de um ano, o cenário internacional se alterou, “com o fortalecimento de ondas de imposição de força de algumas Nações sobre outras. Com isso, na prática, têm sido agredidos postulados essenciais do Direito Internacional”.
Segundo Dino, instituições do multilateralismo têm sido absolutamente ignoradas, tratados internacionais são desrespeitados abertamente – inclusive aqueles que versam sobre proteção de populações civis em conflitos armados – e diferentes tipos de protecionismos e neocolonialismos são utilizados contra povos mais frágeis, sem diálogos bilaterais adequados ou submissão a instâncias supranacionais.
Limitações e exceções às normas estrangeiras
Flávio Dino estabeleceu que qualquer entendimento diferente sobre a aplicação de normas estrangeiras depende de previsão expressa em normas integrantes do Direito Interno brasileiro e/ou de decisão da autoridade judiciária brasileira competente. O ministro citou o artigo 17 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), que dispõe: “As leis, atos e sentenças de outro país, bem como quaisquer declarações de vontade, não terão eficácia no Brasil, quando ofenderem a soberania nacional, a ordem pública e os bons costumes.”
Flávio Dino estabelece que qualquer violação a esses comandos constitui ofensa à soberania nacional, à ordem pública e aos bons costumes, presumindo-se a ineficácia de tais leis, atos e sentenças emanadas de país estrangeiro. Esta presunção só pode ser afastada mediante deliberação expressa do STF, em sede de Reclamação Constitucional oferecida por algum prejudicado, ou outra ação judicial cabível, ressalvada a hipótese de homologação de sentenças estrangeiras e a concessão de exequatur às cartas rogatórias, pelo STJ.
Além disso, Estados e Municípios brasileiros estão, à partir de agora, impedidos de propor novas demandas perante tribunais estrangeiros, em respeito à soberania nacional e às competências atribuídas ao Poder Judiciário brasileiro pela Constituição.
Origem da controvérsia e contratos de risco
A decisão foi tomada na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 1178, apresentada ao STF pelo IBRAM em 11 de junho de 2024. A ação questiona a possibilidade de Municípios brasileiros apresentarem processos judiciais no exterior, prática que tem se tornado cada vez mais comum em casos envolvendo reparações ambientais e outras questões.
Em 12 de outubro de 2024, o ministro Flávio Dino, relator da ação, havia determinado que Municípios com ações judiciais no exterior apresentassem os contratos firmados com escritórios de advocacia para representá-los nessas ações. A liminar também impedia que esses Municípios pagassem honorários de contratos de risco (“honorários de êxito” ou “taxa de sucesso”) nas ações perante tribunais estrangeiros sem que a Justiça brasileira, principalmente o STF, examinasse previamente a legalidade desses atos.
Implicações para o sistema financeiro nacional
Reconhecendo os riscos de operações, transações e imposições indevidas envolvendo o Sistema Financeiro Nacional, Dino determinou a ciência do Banco Central, da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), da Confederação Nacional das Instituições Financeiras (CNF) e da Confederação Nacional das Empresas de Seguros Gerais, Previdência Privada e Vida, Saúde Suplementar e Capitalização (CNseg).
A decisão estabelece que transações, operações, cancelamentos de contratos, bloqueios de ativos, transferências para o exterior ou oriundas do exterior por determinação de Estado estrangeiro, em desacordo com os postulados da decisão, dependem de expressa autorização do STF, no âmbito da presente ADPF.
Como exemplo da consequência prática da decisão, o ministro ressaltou que qualquer cidadão brasileiro que se sentir prejudicado por imposição derivada de lei, sentença ou ato de Estado estrangeiro em território nacional pode acionar diretamente ao STF ou a outro órgão do Poder Judiciário do Brasil.
Próximos passos e audiência pública
Para aprofundar a discussão sobre o tema, o ministro Flávio Dino convocou uma audiência pública. O cronograma e demais especificações do debate, que será presidido pelo relator e coordenada pela juíza Amanda Thomé, serão divulgados oportunamente em despacho complementar.