Documento elaborado com participação direta de pessoas autistas marca avanço na garantia de direitos e reconhece singularidades de cada indivíduo
Atualmente, estima-se que cerca de 2 milhões de brasileiros estejam no espectro autista, segundo a Organização Mundial da Saúde. Para muitos deles, acessar o sistema de Justiça — seja como partes em processos, testemunhas ou simplesmente cidadãos buscando orientação — pode se transformar em uma experiência traumática quando não há preparação adequada dos profissionais que os atendem.
Consciente dessa realidade, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) lançou este ano a segunda edição do Manual de Atendimento a Pessoas do Transtorno do Espectro Autista. O que torna este documento particularmente especial é sua metodologia de construção: foi elaborado com a participação direta de pessoas autistas e neuro diversas, garantindo que as orientações reflitam as necessidades reais dessa população.
“Nada sobre nós, sem nós” — o lema do movimento das pessoas com deficiência finalmente ganha concretude nesta iniciativa. Coordenado pelo conselheiro Pablo Coutinho, por meio do Comitê de Pessoas com Deficiência no Âmbito Judicial, o manual representa mais que um conjunto de diretrizes técnicas: é um compromisso com a dignidade humana.
Cada Pessoa, Uma Necessidade
O documento inova ao reconhecer explicitamente que o autismo se manifesta de formas singulares em cada indivíduo. “Para pessoas autistas, a acessibilidade necessária varia de indivíduo para indivíduo, podendo cada um necessitar de formas de apoios para eliminar as barreiras enfrentadas”, destaca o manual.
Esta compreensão rompe com abordagens padronizadas e convida os profissionais do Judiciário a um atendimento verdadeiramente personalizado. Para alguns, pode significar um ambiente com iluminação mais suave e menor ruído. Para outros, comunicação escrita prévia sobre os procedimentos ou tempo adicional para processar informações. Há ainda quem necessite de pausas sensoriais ou a presença de um acompanhante de confiança.
Direitos Além do Papel
O manual percorre um caminho pedagógico importante: parte do conceito do Transtorno do Espectro Autista, passa pelas barreiras cotidianas enfrentadas por essas pessoas e aprofunda-se em direitos fundamentais como atendimento prioritário, acessibilidade e tecnologias assistivas.
Mas vai além da letra fria da lei. Ao alinhar-se ao modelo biopsicossocial e de direitos humanos da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, aprovada pela ONU, o documento reconhece que a deficiência não está na pessoa, mas nas barreiras que a sociedade impõe.
Um juiz que conhece as particularidades sensoriais de uma testemunha autista e adapta o ambiente da audiência não está fazendo um “favor” — está garantindo o pleno exercício da cidadania. Um servidor que compreende que algumas pessoas autistas se comunicam melhor por escrito não está sendo “bonzinho” — está promovendo acessibilidade comunicacional.
Autonomia como Princípio
Talvez um dos aspectos mais revolucionários do manual seja seu compromisso com a autonomia. As adaptações, esclarece o documento, “devem ter como objetivo promover a autonomia da pessoa autista, respeitando seu protagonismo e sua liberdade de decidir como e quando utilizá-las”.
Esta perspectiva desmonta visões capacitistas que infantilizam pessoas autistas ou presumem incapacidade. Cada indivíduo é reconhecido como o maior especialista em suas próprias necessidades, e cabe ao sistema de Justiça criar as condições para que essa autodeterminação seja exercida plenamente.
Transformando Consciências
A importância do manual transcende suas páginas. Ele representa um passo fundamental na ampliação do conhecimento da sociedade sobre o autismo, começando por dentro do próprio Judiciário. Magistrados, servidores, advogados, defensores públicos e promotores são convidados a rever práticas, questionar pressupostos e, sobretudo, escutar.
Daniel, que abriu esta reportagem, sorri ao saber da iniciativa. “Talvez agora eu consiga buscar aquilo que é meu por direito sem precisar escolher entre minha saúde mental e meus direitos legais. Isso não deveria ser uma escolha que ninguém precisasse fazer.”
O manual está disponível integralmente no site do CNJ e representa um convite: que a Justiça seja, de fato, para todos — respeitando as singularidades, promovendo dignidade e reconhecendo que uma sociedade inclusiva se constrói com escuta, conhecimento e, acima de tudo, humanidade.