Por Carolina Villela
O Supremo Tribunal Federal (STF) retomou nesta quinta-feira (30) o julgamento que pode transformar radicalmente a rotina das abordagens policiais no Brasil. Em discussão está a obrigatoriedade de policiais informarem aos cidadãos o direito ao silêncio desde o primeiro contato, e não apenas durante interrogatórios formais. A decisão terá repercussão geral, afetando todos os processos semelhantes em tramitação no país e estabelecendo um novo padrão de conduta para as forças de segurança.
Três ministros já votaram: O relator, Edson Fachin deu provimento ao (RE) 1177984 para reformar o acórdão recorrido e votou pelo reconhecimento da nulidade de provas colhidas sem que a pessoa abordada pela polícia tenha sido previamente informada sobre o direito constitucional de permanecer em silêncio; Zanin deu provimento parcial; e Dino negou o recurso. O julgamento foi suspenso por pedido de vista de André Mendonça.
Garantia constitucional desde a abordagem
Fachin fundamentou seu voto em dois pontos principais: a nulidade das confissões informais dos recorrentes obtidas no momento do cumprimento do mandado de busca e apreensão e da prisão em flagrante por violação à garantia constitucional do direito ao silêncio; e a absolvição da recorrente Marli Rodrigues Braghetto, mantendo a condenação de Márcio Antônio Rodrigues Braghetto.
O ministro afirmou que o direito ao silêncio, previsto no artigo 5º, inciso LXIII, da Constituição Federal, é uma garantia fundamental contra a autoincriminação e deve ser assegurada desde o primeiro contato com agentes do Estado, como no momento da prisão ou do cumprimento de medida cautelar, e não apenas durante o interrogatório formal. Segundo Fachin, a ausência dessa advertência viola o devido processo legal e torna ilícitas as declarações e provas obtidas nessas circunstâncias.
“É justamente no momento da detenção ou abordagem policial que a garantia constitucional assume maior relevância, por se tratar de uma situação em que o poder estatal se intensifica e a vulnerabilidade do indivíduo é acentuada”, ressaltou o ministro em seu voto.
Tese proposta estabelece seis diretrizes
O relator propôs uma tese abrangente com seis pontos fundamentais. Primeiro, estabelece que o direito ao silêncio é assegurado a toda pessoa cuja declaração possa implicar responsabilidade penal, devendo o agente estatal informá-la de forma imediata, seja no momento da prisão, seja diante de qualquer ato de inquirição.
Segundo a proposta, a advertência deve conter informação expressa de que o direito ao silêncio não implica confissão nem deve ser interpretado em prejuízo da defesa. Além disso, a ausência de comunicação prévia e expressa torna ilícitas as declarações obtidas e as provas delas derivadas, tanto em abordagens quanto em interrogatórios.
A tese também determina que compete ao Estado demonstrar que o direito ao silêncio foi efetivamente observado no momento da abordagem ou interrogatório. A comunicação deve ser preferencialmente registrada por meio audiovisual ou, subsidiariamente, por documento escrito ou comunicação oral. Por fim, as teses terão vigência a partir da data do julgamento, ressalvadas as ações já em curso com nulidade arguida.
Divergências sobre a aplicação prática
O ministro Flávio Dino, embora tenha acompanhado o relator quanto à tese geral, apresentou ressalvas sobre sua aplicação. Quanto ao descumprimento da obrigatoriedade, Dino considerou que não deve ser aplicada automaticamente a nulidade, por estar em desacordo com o princípio da proporcionalidade e contra o Código de Processo Penal, que prevê as chamadas fontes independentes e das descobertas inevitáveis.
Sobre a prova da comunicação, o ministro defende que a gravação não deve ser incluída na tese como única prova cabível, já que policiais, como servidores públicos, têm seus atos protegidos pela presunção de veracidade. Segundo Dino, o Estado tem que demonstrar que procedeu a advertência por qualquer meio de prova possível.
Por fim, Flávio Dino propôs que a advertência não deve ser aplicada em relação às buscas pessoais e que o efeito deve ser prospectivo, ou seja, a partir da decisão. No caso concreto, o ministro votou para negar provimento ao recurso e manter a decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), que considerou desnecessária essa advertência no momento da abordagem policial.
Situações de urgência justificam a ausência de advertência
O ministro Cristiano Zanin, ao acompanhar parcialmente o relator, defendeu que o direito ao silêncio não se limita ao ambiente formal das salas de audiências e das delegacias e deve ser assegurado desde o primeiro contato da pessoa com o poder repressivo do Estado.
No entanto, destacou que em situações de urgência que envolvem a segurança pública ou na impossibilidade de se fazer a advertência, caracterizada por um perigo atual, como desarmar uma bomba, por exemplo, menor será o dever de esclarecer. “A urgência, portanto, justifica a mitigação ou a supressão da advertência”, afirmou.
Zanin deu parcial provimento ao recurso, no caso concreto, para desentranhar as provas ilícitas, cassar o acórdão recorrido e remeter o feito ao juízo de primeiro grau para a possibilidade de valoração dos fatos e julgamento respectivo sem as declarações ilícitas.
O caso que originou a controvérsia
O recurso foi apresentado por um casal preso em flagrante após a polícia encontrar armas e munições em sua residência durante o cumprimento de um mandado de busca. No momento da ação policial, a mulher teria admitido informalmente que possuía uma das armas encontradas, declaração que posteriormente foi utilizada como prova de posse ilegal de arma de fogo contra o casal.
A defesa contestou a validade dessa confissão informal, argumentando que ela ocorreu sem que houvesse a prévia advertência sobre o direito ao silêncio. Os advogados recorreram da decisão do TJ-SP, que considerou desnecessária essa advertência no momento da abordagem policial.
Segundo a defesa, a ausência do aviso viola o artigo 5º, inciso LXIII, da Constituição Federal, que estabelece que “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado”. Os advogados sustentam que esse dispositivo constitucional não se limita aos interrogatórios formais, devendo ser aplicado também às conversas informais entre policiais e suspeitos no momento da prisão.
Entidades defendem advertência desde a abordagem
Durante a sessão de quarta-feira, diversas instituições, entre elas, a Pública da União (DPU), o Grupo de Atuação Estratégica das Defensorias Públicas Estaduais e Distrital nos Tribunais Superiores, o Instituto Brasileiro de Direito Processual Penal, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e o Instituto de Defesa do Direito de Defesa, .apresentaram sustentações orais favoráveis à obrigatoriedade da advertência já no primeiro contato policial.
O argumento central dessas entidades é que o dever de informar sobre o direito ao silêncio e à não autoincriminação deve se impor desde o primeiro contato entre o cidadão e os agentes policiais. Elas defendem que essa medida concretiza garantias constitucionais e compromissos assumidos pelo Brasil em tratados internacionais de direitos humanos.
Além disso, o grupo argumenta que a advertência prévia reduz o peso e os riscos associados às confissões informais, que muitas vezes ocorrem em momentos de vulnerabilidade emocional e desconhecimento sobre direitos fundamentais. Para essas instituições, garantir que a manifestação do cidadão seja voluntária e plenamente informada é essencial para legitimar o processo penal e evitar abusos.
Ministério Público alerta para impactos práticos
Em sentido contrário, o Ministério Público do Estado de Minas Gerais (MPMG) destacou os potenciais impactos práticos de uma exigência ampla e irrestrita da advertência no contexto das abordagens policiais cotidianas.
Entre as preocupações levantadas pelo MPMG estão a morosidade que poderia ser gerada no trabalho policial, a necessidade de revisão massiva de processos já em andamento e o possível desestímulo a confissões voluntárias e válidas que auxiliam na elucidação de crimes. O Ministério Público defende uma solução que analise cada caso individualmente, levando em conta as circunstâncias específicas de cada abordagem.
A proposta do MPMG é preservar a possibilidade de valoração de relatos obtidos sem coação em contextos regulares, reservando a exigência da advertência formal apenas para situações delimitadas e previamente definidas. A instituição também sinalizou preocupação com a segurança jurídica e sugeriu, caso a tese da advertência ampla seja acolhida, a adoção de soluções de transição como a modulação dos efeitos da decisão.
 
								



 
															 
															 
															 
															 
															 
															 
															 
															