Por Carolina Villela
O Supremo Tribunal Federal (STF) deu início nesta quarta-feira (1º) ao julgamento de duas ações que discutem a natureza jurídica da relação entre aplicativos de transporte e entrega, como Uber e Rappi, e seus motoristas e entregadores. As empresas contestam decisões da Justiça do Trabalho que reconheceram vínculo empregatício e determinaram o cumprimento da legislação trabalhista.
O novo presidente da Corte, ministro Edson Fachin, abriu a sessão anunciando que o julgamento começaria com a Reclamação (RCL) 64018, movida pela Rappi. Após a leitura do resumo do caso pelo relator, ministro Alexandre de Moraes, as partes interessadas no debate iniciaram suas manifestações. O julgamento foi suspenso após as sustentações orais e será retomado em nova data.
Empresas negam relação de emprego com trabalhadores
Márcio Vitral, advogado da Rappi, iniciou negando que exista relação de emprego entre a empresa e os entregadores, classificados por ele como parceiros econômicos. O defensor esclareceu que a Rappi funciona apenas como uma plataforma digital que conecta consumidores e prestadores de serviço, sem exercer atividade comercial direta. “Não vende nada, não comercializa nada e não transporta ninguém”, afirmou.
Para Vittal, o reconhecimento de vínculo empregatício representa “um esforço para arrancar do exame de uma relação jurídica, quase que a fórceps, aquilo que ela definitivamente não contém, que definitivamente não existe”.
Ana Carolina Caputo Bastos, advogada da Uber, seguiu linha similar ao afirmar que “não há valor social do trabalho sem livre iniciativa” e que o objetivo da empresa é buscar justiça social que proteja simultaneamente motoristas, a empresa e os consumidores. Ela descreveu a ação como “um pedido de autonomia com direitos”, ressaltando que a Uber oferece um novo modelo de mercado por meio da intermediação tecnológica.
Defesa dos trabalhadores aponta subordinação algorítmica
Mauro de Azevedo, representante do beneficiário da decisão questionada pela Rappi, apresentou argumentação oposta ao afirmar que ficou comprovada a subordinação algorítmica nas relações de trabalho. “Não é uma fantasia, é algo concreto que está no artigo 6° da CLT”, enfatizou o advogado, referindo-se ao dispositivo legal que caracteriza a subordinação nas relações de emprego.
Entre os elementos determinantes da relação empregatícia, Azevedo citou que os valores das corridas e entregas são estipulados unilateralmente pelas empresas, sem participação dos trabalhadores na definição dos preços. Além disso, destacou as sanções aplicadas aos profissionais que rejeitam viagens seguidamente.
O advogado contrariou a argumentação das plataformas ao afirmar que se trata, sim, de empresas de transporte e entrega, e não meras intermediadoras tecnológicas. Azevedo mencionou ainda uma legislação espanhola que estabelece presunção de vínculo empregatício quando uma plataforma digital contrata um trabalhador, ressaltando tratar-se de “dispositivo que está na lei espanhola que tem dado ótimos resultados”.
Entidades divididas entre livre iniciativa e direitos trabalhistas
Eugênio Júnior, representante da Federação das Indústrias do Estado do Rio Grande do Sul (Fiergs), posicionou-se favoravelmente às empresas ao destacar que o valor do trabalho deve ser interpretado em conformidade com a liberdade econômica. O advogado defendeu o acolhimento da reclamação para cassar a decisão que reconheceu vínculo de trabalho e garantir segurança jurídica ao setor. “A preocupação da Fiergs é que possamos engessar novos modelos pretendendo dar soluções antigas a novas relações”, argumentou.
Pela Central Única dos Trabalhadores (CUT), Ricardo Quintas Carneiro manifestou-se pela improcedência da reclamação, enfatizando a subordinação como elemento principal caracterizador da relação de trabalho. O advogado sustentou que essa modalidade de trabalho se enquadra no trabalho intermitente, regulamentado pela reforma trabalhista de 2017, e não na prestação de serviços autônomos defendida pelas empresas.
Quintas classificou como retóricas as justificativas apresentadas pelas plataformas para o não cumprimento de deveres fiscais, trabalhistas, previdenciários e sociais, “tendo como único objetivo a maximização dos lucros”.
Trabalhadores alertam para risco de extinção de direitos constitucionais
Gustavo Ramos, representante da Associação de Trabalhadores por Aplicativos e Motociclistas do Distrito Federal e Entorno (Atam-DF), defendeu que o Judiciário deve julgar caso a caso para proteger direitos fundamentais relacionados ao trabalho e à previdência social. O advogado alertou para os riscos de uma decisão genérica que beneficie as plataformas.
Segundo Ramos, uma eventual validação em abstrato de uma tese que permita a contratação de trabalhadores via aplicativo sem vínculo de emprego significará “a extinção do artigo 7° da Constituição para boa parte dos trabalhadores”. O dispositivo constitucional mencionado estabelece os direitos fundamentais dos trabalhadores urbanos e rurais.
O defensor destacou ainda que países mais desenvolvidos, como os da União Europeia, constataram que há limites para a liberdade de iniciativa. “A livre iniciativa não pode ser um salvo conduto para a sonegação de direitos”, afirmou, citando experiências internacionais de regulamentação do trabalho em plataformas digitais.
Uber apresenta projeções de impacto econômico
A advogada da Uber, Ana Carolina Caputo Bastos, apresentou projeções econômicas alarmantes caso o modelo de negócio da empresa seja afetado pela decisão do STF. Segundo estimativas apresentadas pela defesa, haveria uma redução de R$ 45,9 bilhões no PIB brasileiro e queda de R$ 2,7 bilhões em tributos de consumo.
Os números incluem ainda previsão de que a quantidade de motoristas abaixo da linha da pobreza saltaria de 2,5% para 69,2%, com redução de 52% dos postos de trabalho disponíveis na plataforma. A estimativa aponta também para aumento médio de 34% no preço das viagens, o que impactaria diretamente os consumidores.
AGU defende proteção jurídica e seguro social para trabalhadores
O advogado-geral da União, Jorge Messias, destacou a complexidade da relação jurídica a ser enquadrada como trabalhista e reforçou a importância do Supremo trazer o tema à pauta. “Trabalhar é preciso, mas viver também é preciso”, destacou Messias, sinalizando a necessidade de equilíbrio entre atividade econômica e proteção social.
“Nós todos dependemos da qualificação jurídica a ser aplicada ao caso por uma questão de dignidade da pessoa humana, inclusive dos passageiros”, ressaltou o advogado-geral.
“Embora a relação entre plataformas digitais e motoristas não corresponda aos modelos convencionais de empregado e empregador, isso não significa, de maneira alguma, que tais trabalhadores devam ficar desassistidos de qualquer proteção jurídica ou seguro social”, defendeu Jorge Messias. O advogado-geral alertou ainda: “Não vamos admitir que alguns estejam nos botes, com coletes salva-vidas, e outros à deriva”.
Entre outros pontos, Jorge Messias defendeu que deve ser assegurado piso remuneratório, seguro de vida e espaço de descanso e de apoio à atividade do trabalhador.
Tema chega ao plenário após decisões divergentes
Até agora, a chamada “uberização” – termo que designa o trabalho intermediado por aplicativos de entregas ou transporte de passageiros – vinha sendo analisada apenas pelas Turmas do STF ou em decisões monocráticas, gerando insegurança jurídica pela falta de uniformização. Para estabelecer um posicionamento uniforme, o tema foi encaminhado ao Plenário, onde os 11 ministros poderão estabelecer uma tese vinculante aplicável a todos os casos similares.
O recurso da Uber foi reconhecido com repercussão geral e registrado como Tema 1.291. Em dezembro de 2024, o STF realizou uma audiência pública para discutir os impactos econômicos e sociais da decisão que será tomada. O debate reuniu especialistas, representantes de trabalhadores, empresas e entidades da sociedade civil, ampliando o escopo da análise.