Por Hylda Cavalcanti
João, 19 anos, amava Maria, 13 anos, que também amava João. Só que Maria era menor de 14 anos (os nomes são fictícios). A história consiste em um grande caso de amor ou situação de estupro de vulnerável? A pergunta foi questionada num caso cuja divergência jurisprudencial levou o Superior Tribunal de Justiça (STJ) a tomar posição especialíssima. Depois de analisar todas as informações no recurso, os ministros que integram a 5ª Turma da Corte decidiram pela aplicação da técnica jurídica do distinguishing, para afastar a aplicação do entendimento predominante.
Distinguishing — palavra que significa ‘discernir sobre a natureza de algo’, em inglês — é uma técnica jurídica que permite aos magistrados deixarem de aplicar determinada súmula do Tribunal em casos excepcionais. Mas contanto que existam fundamentos constitucionais e infraconstitucionais que justifiquem a prevalência da justiça material sobre a interpretação literal do tipo penal.
Consentimento da família
Com esse entendimento, os ministros evitaram a condenação de um jovem por estupro de vulnerável, num caso em que ele e a moça, que moravam na mesma rua por muito tempo, se apaixonaram, tiveram um relacionamento amoroso de um ano e quatro meses, com o conhecimento dos pais e chegaram a ter um filho — a quem o rapaz, mesmo depois do fim da relação, presta todo o apoio efetivo e assistência.
Denunciado por outras pessoas, o rapaz foi absolvido em primeiro grau, diante dos depoimentos de testemunhas no sentido de que tudo sempre foi consentido pelas famílias. Mas o tribunal estadual reformou a absolvição, por entender que não seria possível reconhecer a atipicidade da conduta nesse caso.
Os desembargadores ressaltaram que “nem o consentimento da vítima nem a existência de vínculo afetivo teriam o efeito de descaracterizar o crime, que, por se tratar de delito de violência presumida, não admite relativização”.
Circunstância específica
O processo subiu para o STJ. Foi quando o desembargador convocado Carlos Marchionatti – que já deixou o Tribunal –, acolheu integralmente a posição apresentada pelo ministro Reynaldo Soares da Fonseca em seu voto-vista.
O entendimento do voto-vista, aprovado pelos ministros, foi de que a jurisprudência consolidada do STJ, por meio da Súmula 593, reconhece a vulnerabilidade absoluta de menores de 14 anos, tornando irrelevantes o consentimento, as experiências sexuais anteriores ou a existência de relacionamento afetivo.
Mas consideraram, que a aplicação dessa tese não dispensa a análise das circunstâncias específicas do caso concreto, sendo possível uma mudança diante de situações que evidenciem “ausência de efetiva lesão ao bem jurídico protegido”. Assim, a Turma acolheu a aplicação da técnica do distinguishing para deixar de aplicar a súmula.
“Erro de proibição”
Os magistrados argumentaram, na decisão, que a não aplicação da súmula é possível em “situações que evidenciem erro de proibição e ausência de efetiva lesão ao bem jurídico protegido”. O “erro de proibição” acontece quando alguém pratica um ato ilícito sem o conhecimento de que era proibido por lei.
Os ministros também citaram o artigo 227 da Constituição Federal e a Lei 13.257/2016 (referente ao Marco Legal da Primeira Infância).
Tanto a Carta Magna como a legislação estabelecem que a proteção integral da criança nascida de relacionamento amoroso justifica uma solução que preserve o núcleo familiar constituído e evite traumas mais graves decorrentes da condenação do pai. O número do processo não foi divulgado pelo STJ em função do segredo judicial. Em outras palavras, tanto na tese como na vida real, na circunstância avaliada o amor venceu!
— Com informações do STJ