Por Jeffis Carvalho
A diretora Rebecca Miller com o cineasta Martin Scorsese
Cinco anos de produção, 20 horas de entrevistas e acesso irrestrito aos arquivos pessoais de um dos maiores cineastas vivos. O resultado é Mr. Scorsese, minissérie documental em cinco partes dirigida por Rebecca Miller sobre Martin Scorsese, com participações de Robert De Niro, Mick Jagger, Steven Spielberg, Leonardo DiCaprio e dezenas de outros colaboradores.
Lançada no Apple TV+ na semana passada, após estreia no Festival de Cinema de Nova York, a produção já está sendo apontada como o retrato definitivo do diretor de obras-primas como Taxi Driver, Touro Indomável, Os Bons Companheiros, A Era da Inocência; e o premiado Os Infiltrados, que lhe rendeu seus únicos Oscar de filme e direção.
Com duração total de 4 horas e 45 minutos, o projeto começou modesto. Rebecca Miller, que havia documentado seu pai, o dramaturgo Arthur Miller, planejava inicialmente um longa-metragem convencional. Mas o material coletado provou ser impossível de comprimir. “Não havia como ir tão fundo quanto eu queria em uma hora e meia ou duas horas”, explicou Miller ao The Washington Post. O que era para ser duas partes virou três, depois quatro e, finalmente, cinco episódios.
O timing perfeito de uma pandemia
A sorte jogou a favor: a reunião inicial entre Miller e Scorsese aconteceu três dias antes do lockdown global da COVID-19. O confinamento forçado deu ao diretor, conhecido por seu ritmo frenético de trabalho, um tempo raro para reflexão. Segundo Miller, a pandemia pode ter sido crucial para que o projeto acontecesse da forma como aconteceu, dando ao cineasta mais tempo para refletir do que ele normalmente se permitiria.
A escolha de Miller para o projeto não foi aleatória. Casada com o ator Daniel Day-Lewis, colaborador de Scorsese, ela já conhecia superficialmente o diretor desde os tempos de Gangues de Nova York, quando pediu conselhos sobre o uso de narração em voz over. Mas foi sua visão artística que selou o acordo. “Nunca saberei o motivo real, e Scorsese não me contou, mas ele gostava dos meus filmes”, revelou a diretora.
A estrutura: da aspiração ao sacerdócio até Leonardo DiCaprio
A vida e obra de Scorsese receberam uma estrutura simples de cinco atos. Miller começa com a biografia inicial de Scorsese e sua evolução de aspirante a padre para estudante de cinema e diretor estreante no filme produzido por Roger Corman, Sexy e Marginal (Boxcar Bertha). Em seguida, passa para Caminhos Perigosos (Mean Streets), as colaborações iniciais com Robert De Niro, cocaína e exaustão. Depois, mais cocaína, além de Touro Indomável (Raging Bull) e a errância do diretor no deserto cinematográfico em meados dos anos 1980. A série então conclui com A Última Tentação de Cristo e Os Bons Companheiros, seguidos pelos anos com Leonardo DiCaprio, terminando na pré-produção de Assassinos da Lua das Flores.
Cada episódio foi projetado com identidade própria:
Episódio 1: Um estranho numa terra estranha – A infância como filho de imigrantes, moldado pela Igreja Católica e pelas ruas violentas, com o cinema como escape.
Episódio 2: Toda essa filmagem não faz bem – A parceria com De Niro que definiu o cinema dos anos 1970 e as lutas pessoais que quase destruíram o cineasta.
Episódio 3: Santo/Pecador – O renascimento com Raging Bull, o fracasso de The King of Comedy e a busca por projetos de paixão. O título vem de Isabella Rossellini, terceira esposa de Scorsese, que descreve como a fascinação do diretor pela moralidade contrasta com comportamentos questionáveis.
Episódio 4: Cinema Total – Após controvérsias internacionais, o sucesso massivo com Goodfellas e uma nova visão de cinema.
Episódio 5: Diretor do Método – A parceria com DiCaprio leva Scorsese a novos patamares enquanto ele continua se reinventando.
Elenco de primeira linha revela bastidores
O documentário reúne entrevistas inéditas com os atores De Niro, Daniel Day-Lewis, Leonardo DiCaprio, os músicos Mick Jagger e Robbie Robertson, a sua grande montadora Thelma Schoonmaker, Steven Spielberg, Sharon Stone, Jodie Foster, Paul Schrader, Margot Robbie, Cate Blanchett, Jay Cocks e o diretor de fotografia Rodrigo Prieto, além de grandes amigos de infância.
Miller também conversou com as três filhas do diretor, a ex-esposa Isabella Rossellini, contemporâneos como Brian De Palma e cineastas mais jovens como Spike Lee, Ari Aster e os irmãos Safdie. As filhas – Cathy, Domenica e Francesca, cada uma de um casamento diferente – falam abertamente sobre o relacionamento com o pai, deixando claro que ele não esteve tão presente na infância das duas mais velhas.
Violência, catolicismo e a briga pela integridade artística
A violência é explorada de forma íntima, já que o tema é central na filmografia de Scorsese, com a entrevistadora constantemente buscando chegar às origens dessa obsessão. Miller admite fascínio pela justaposição entre o catolicismo fervoroso e a fixação pela violência: “Eu tinha que fechar os olhos às vezes. Fiquei muito afetada”.
Um dos momentos mais reveladores envolve Taxi Driver. Steven Spielberg relembra uma ligação de um Scorsese extremamente perturbado diante da possibilidade de alterar a montagem da sequência final violenta. Brian De Palma confirma: “Ele estava enlouquecendo”. A solução foi técnica: reduzir a saturação de cores e adicionar textura granulada, preservando o espírito do final sem receber classificação X da MPAA (Motion Picture Association).
Como Miller observa, “o que ele quer combater é a homogeneização do cinema. Ele quer preservar vozes individuais porque é muito importante”.
Metodologia: “escuta radical” e memórias inesperadas
Miller descreve sua abordagem como “escuta radical” – ouvir genuinamente e responder sem manipular as conversas ou extrair informações forçadamente. Foram 20 horas de conversas ao longo de cinco anos, filmadas em locações variadas. As melhores cenas acontecem em restaurantes com pouca iluminação, onde Scorsese e amigos de infância rememoram a criação dura no bairro com mistura de franqueza e nostalgia.
Há momentos surpreendentes: quando Miller perguntou se o pai de Scorsese havia se sentido humilhado por determinado incidente, ele respondeu superficialmente. Mais de um ano depois, já encerradas as entrevistas, o diretor ligou pedindo para gravar um áudio. Ele revelou que, ao assistir Ladrões de Bicicleta, do diretor italiano Vittorio De Sica,pela primeira vez, aquela memória voltou com força total.
O processo de montagem explorou caminhos inusitados – inclusive uma versão narrada do ponto de vista do cachorro de Scorsese nos anos 1980. No fim, dispensaram a narração em off, tornando o trabalho mais complexo, mas autêntico.
Retrato íntimo de um gênio imperfeito
Miller reflete sobre a transformação do diretor: “A forma como o conhecemos agora é tão amigável, um personagem encantador. Mas ele era uma pessoa realmente sombria e atormentada” nos anos 1970 e 1980. O documentário não suaviza o uso de drogas nem a obsessão pelo trabalho que levou a múltiplos divórcios.
Miller resume o desafio: “Sou tão grata pela liberdade artística e acesso para criar um retrato cinematográfico de um dos maiores artistas vivos. Sua obra e vida são tão vastas e convincentes que a peça evoluiu de uma para cinco partes ao longo de cinco anos”.
Mr. Scorsese não é apenas documentário – é celebração da arte cinematográfica através do prisma de quem dedicou a vida a defendê-la. Em tempos de homogeneização, Miller capturou a essência de uma voz singular que ajudou a moldar o cinema moderno.



