Uma crônica sobre o encontro de duas vozes que navegam entre o popular, o clássico e o ancestral
Por Jeffis Carvalho
“Vai voadeira, segue viagem…” O verso inicial de A Fina Flor da Rapiocagem ecoa como um convite irrecusável. E se rapiocagem é festa extravagante, vida airada, celebração barulhenta — ou no seu sentido botânico esquecido, aquela planta tropical da família das anonáceas; ou ainda pode ser a imagem da própria floresta —, então o encontro musical entre Manu Lafer e Marlui Miranda no álbum Mar Nu, de 2025, é exatamente isso: uma rapiocagem no melhor sentido da palavra. Uma festa de sons que navega pela Amazônia carregando riquezas improváveis.

Marlui Miranda e Manu Lafer
A casa onde só havia música de qualidade
A voadeira que os uniu partiu de uma casa paulistana onde, segundo Marlui, “só havia música de qualidade”. Ali, no acervo musical cuidadosamente selecionado por Betty Mindlin — antropóloga e etnóloga, mãe de Manu, filha intelectual da floresta —, um adolescente chamado Manuel (e já Manu) descobria que música podia ser samba, baião, afoxé, foxtrot, bolero. Podia ser tudo, desde que fosse verdade.
Anos 1980. Betty trabalha com pesquisa na Amazônia. E é por meio dela que o jovem Manu conhece Marlui, a cearense que desde 1979 dedica sua vida a algo aparentemente impossível: capturar o incapturável. Marlui visita aldeias dos índios Kraô, Urubu-Ka’Apor, Juruna. Grava cantos que existiam antes de existir Brasil, antes de existir gravador. Em 1995, lança “Ihu: Todos os Sons” — título que significa tudo que chega ao ouvido, inclusive o sobrenatural, o som dos espíritos, as entidades mágicas das florestas.
Entre a pediatria e as 300 canções
Enquanto isso, Manu — filho do ex-chanceler Celso Lafer e neto de José Mindlin, o empresário inovador, escritor e bibliófilo que doou à USP uma biblioteca inteira — equilibra-se entre dois mundos aparentemente distantes mas que ele sabe aproximar de forma definitiva pela arte, pela música. De um lado, a pediatria, com dedicação especial às populações carentes e povos originários a partir de 2004. Do outro, mais de 300 canções compostas desde 1995, cada uma experimentando algo novo, buscando aquela melodia cativante que pode grudar na memória como jambu na língua, mas que pede paciência para curtir e sutileza para entender.
A dupla vocação une os dois artistas. Manu divide-se entre estetoscópio e violão. Marlui, entre pesquisa acadêmica e palco. Ela recebe a Medalha do Mérito Cultural do Ministério da Cultura em 2002. Ele continua seu trabalho como infectologista pediátrico, atendendo crianças entre uma composição e outra. Ambos entendem que arte e cuidado são faces da mesma moeda.
Mar Nu: quando a maré recua e revela o essencial
Quando gravam o álbum Mar Nu — título que evoca despojamento, essencialidade, aquele momento em que a maré recua e revela o que estava escondido, mas também é anagrama poético e sonoro de seus nomes —, a parceria faz sentido imediato. A sofisticação harmônica de Manu encontra a voz que conhece os espíritos da floresta. O compositor-pesquisador encontra a guardiã das vozes indígenas. E ambos entendem que fazem a mesma coisa por caminhos diferentes: preservar memórias, celebrar identidades, honrar o que veio antes; projetar o que ainda vem.
“Traz a riqueza da estiagem/ Pra fina flor da rapiocagem”, canta a música. E que riqueza é essa senão a capacidade de transformar seca em festa, silêncio em canto, esquecimento em memória viva? A estiagem amazônica, paradoxalmente, traz fartura — revela praias, caminhos, possibilidades. Do mesmo modo, o encontro entre Manu e Marlui revela algo essencial sobre a música brasileira: ela existe no trânsito, na mistura, no respeito ao que veio antes enquanto se inventa o que virá depois.
A voadeira que carrega tradição e inovação
Vai voadeira, segue viagem. A embarcação amazônica que dá nome ao verso continua navegando, levando Manu e Marlui, Betty e os índios Kraô, José Midlin e seus livros, Celso Lafer e sua diplomacia, tudo junto e misturado nessa rapiocagem sonora que é o Brasil quando se permite ser autêntico.
Ela diz que ainda é minha, essa música, essa cultura, esse encontro improvável entre o erudito e o ancestral. E sua na Manaus, no calor de quentes graus, onde tudo que é paralelo eventualmente se encontra. Porque no fundo, Manu e Marlui sempre souberam: a melhor música brasileira não escolhe entre tradição e inovação. Ela embarca na voadeira e segue viagem, carregando as duas coisas no mesmo barco.
A metáfora do mar e da nudez
A fina flor da rapiocagem não é a festa pela festa. É a celebração consciente, a extravagância com propósito, a vida airada que não esquece suas raízes enquanto inventa novos galhos. É a planta tropical que floresce improvável, bela, necessária.
Mar Nu, a faixa que dá título ao álbum é mais um exemplo de composição poética e delicada de Manu Lafer que explora temas de despojamento emocional e entrega. A canção trabalha com a metáfora do mar e da nudez para falar sobre vulnerabilidade e autenticidade dos sentimentos. Por meio de imagens líquidas e sensoriais, a letra sugere um convite à exposição genuína dos sentimentos, sem máscaras ou proteções, como quem se entrega completamente às ondas. A musicalidade suave de Manu complementa essa atmosfera de intimidade e contemplação, criando uma experiência que equilibra fragilidade e força no ato de se revelar por inteiro diante da vida.
Um oceano de ritmos brasileiros
As rimas atuam de forma conceitual, muito além da simples combinação de sons – e quase sempre envolvem momentos, condições, locais e sentimentos antagônicos. Um mar poético de possíveis significados. Na voz de Marlui a canção ganha um contorno ao mesmo tempo de constatação, lamento e resistência. Uma maré em sua cheia de sentimentos.
E pra lá da poesia e das rimas, a musicalidade em si se revela um oceano de ritmos brasileiros, marcados como um lamento sertanejo, quase um blues a brasileira.
Nesta e em todas as faixas do álbum, vamos entendendo que a entonação e a dicção de Marlui agem para destacar que para além do texto narrado pelas canções – ou seja, as letras escritas por Manu -, estas destacam a própria construção da musicalidade.
É a música pela palavra. E a palavra em forma musical. Porque vai voadeira, que a viagem continua.



