Por Carolina Villela
O Supremo Tribunal Federal (STF) retomou nesta quarta-feira (17) o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7265, que questiona a ampliação da cobertura dos planos de saúde para procedimentos não previstos no rol da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). O caso, considerado pelo relator ministro Luís Roberto Barroso como “um dos mais difíceis” de sua trajetória no STF, já apresenta divergência após três votos proferidos.
Barroso validou parte da Lei Federal 14.454/2022, aprovando o parágrafo 12 do artigo 10, mas considerou inconstitucional o parágrafo 13 por criar uma “cláusula de abertura que gera incerteza regulatória e compromete a previsibilidade dos contratos”. O ministro foi acompanhado por Nunes Marques, mas encontrou divergência do ministro Flávio Dino, que considerou a lei “legítima e presumivelmente constitucional”. O julgamento foi suspenso e será retomado nesta quinta-feira (19) com o voto do ministro Cristiano Zanin.
Relator propõe “taxatividade mitigada” com cinco requisitos rigorosos
Reconhecendo a complexidade do tema, Barroso destacou que se trata de um julgamento onde “não existe solução juridicamente simples nem moralmente barata”, pois “aqui são feitas escolhas dramáticas, porque muitas vezes são as escolhas sobre quem vai viver e quem vai morrer”. Diante disso, o ministro optou pela chamada “taxatividade mitigada”.
Sua proposta reconhece o rol da ANS como parâmetro técnico obrigatório, mas admite, em hipóteses excepcionais, a cobertura de tratamentos não listados desde que observados critérios extremamente rigorosos. A tese estabelece cinco requisitos cumulativos que devem ser preenchidos simultaneamente: prescrição por médico ou odontólogo assistente, inexistência de negativa expressa da ANS ou pendência de análise, ausência de alternativa terapêutica adequada no rol, comprovação de eficácia baseada em evidências científicas de alto nível e existência de registro na Anvisa.
Explosão de demandas judiciais cria crise bilionária no setor
Os números apresentados por Barroso revelam uma crise financeira no setor de saúde suplementar. Entre 2020 e 2025, as despesas decorrentes de demandas judiciais quadruplicaram, saltando de aproximadamente R$ 1 bilhão para impressionantes R$ 4 bilhões – valores que não estavam previstos no cálculo dos contratos das operadoras de planos de saúde.
O cenário se torna ainda mais complexo quando somado às perdas por fraudes. Estudos citados pelo relator indicam que, somente em 2022, as ações fraudulentas causaram prejuízos estimados em R$ 34 milhões, representando 12,7% das receitas totais do setor. As práticas irregulares mais frequentes incluem empréstimo de carteirinhas, reembolsos duplicados, registros de atendimentos inexistentes e adulteração de procedimentos para gerar cobranças indevidas.
Para Barroso, a questão transcende aspectos meramente financeiros. “Mais do que lucros ou prejuízos, o desafio está em estruturar um modelo sustentável e equilibrado que assegure condições e continuidade para as operadoras de diferentes perfis”, afirmou o ministro, enfatizando que “a segurança jurídica ocupa papel central” na busca por esse equilíbrio.
Críticas fundamentais ao modelo atual da legislação
Para o relator o parágrafo 13 da Lei 14.454/2022 representa um “mecanismo aberto de flexibilização do rol”, com três principais problemas. O primeiro problema reside na redação imprecisa, que não apresenta critérios técnicos objetivos e verificáveis, utilizando expressões vagas que comprometem a aplicação prática e uniforme da norma.
O segundo aspecto crítico é a criação de um sistema paralelo de incorporação de procedimentos. Ao prever obrigatoriedade de cobertura fora do rol sem qualquer mediação ou avaliação prévia da ANS, a norma estabelece um “canal de incorporação paralelo ao processo regulatório técnico estruturado” das regulamentações da agência reguladora.
O terceiro problema identificado por Barroso é a flexibilidade excessiva dos critérios, já que a lei permite cobertura obrigatória com o preenchimento alternativo de apenas um requisito. O que possibilita a aprovação de tratamentos com eficácia marginal, uso off label ou sem qualquer avaliação de impacto econômico, comprometendo a sustentabilidade financeira do sistema de saúde suplementar.
Novas diretrizes rigorosas para o Poder Judiciário
A proposta de tese do relator estabelece um protocolo para o Poder Judiciário ao analisar pedidos de cobertura de procedimentos não incluídos no rol da ANS. Como regra geral, a ausência de inclusão no rol impede a concessão judicial, salvo quando comprovadamente preenchidos os cinco requisitos específicos, sendo o ônus probatório integralmente do autor da ação judicial.
Sob pena de nulidade da decisão judicial, os magistrados deverão obrigatoriamente cumprir quatro etapas procedimentais. Primeiro, verificar a existência de prova do prévio requerimento à operadora de saúde e sua respectiva negativa, mora irrazoável ou omissão. Segundo, analisar criteriosamente o ato administrativo de não incorporação pela ANS, considerando as circunstâncias do caso concreto sem adentrar no mérito técnico-administrativo.
A terceira obrigação é aferir a presença dos requisitos técnicos através de consulta prévia ao Núcleo de Apoio Técnico do Poder Judiciário (NATJUS) ou entidades com expertise técnica reconhecida, vedando fundamentar decisões apenas em prescrições, relatórios ou laudos médicos apresentados pela parte interessada. Por fim, em caso de deferimento judicial, determinar que seja oficiada a ANS para avaliar a possibilidade de inclusão do tratamento no rol de cobertura obrigatória.
Divergência de Dino aponta “caminho trevoso” na proposta do relator
O ministro Flávio Dino apresentou voto divergente, iniciando sua manifestação com o reconhecimento de que “a busca do equilíbrio quanto aos temas da saúde é delicada”. Segundo sua avaliação, as inovações tecnológicas na área médica criam um paradoxo complexo: enquanto melhoram significativamente os sistemas de saúde, encarecem os serviços oferecidos.
Dino considera a Lei 14.454/2022 “legítima e presumivelmente constitucional”, divergindo do relator em relação à adoção da “taxatividade pura” ou mesmo mitigada. Na visão do ministro, a proposta de Barroso oferece um “caminho trevoso, pedregoso e quase intransponível sob a ótica dos consumidores”, dificultando o acesso dos usuários a tratamentos necessários.
Como alternativa, Flávio Dino propôs a regulação técnica para preservar o marco legislativo estabelecido, integrando as opções legislativas com a deferência técnica já prevista na própria lei. O ministro sugeriu que o STF não deve avançar na construção de teses detalhadas, função que deveria ser desempenhada pela ANS através de regulamentações técnicas específicas.