Por Jeffis Carvalho
A Barragem Igarapé Mutum não tem vertedouro. Exatamente o que você leu: uma estrutura que retém milhões de litros d’água, erguida sobre terra amazônica, não possui o dispositivo básico para escoar o excesso de água com segurança. Desde fevereiro de 2024, ela pisca em vermelho no mapa de risco de Rondônia — um sinal de alerta que o procurador do Ministério Público Federal (MPF) André Porreca, do 2º Ofício da Amazônia Ocidental, não consegue tirar da cabeça.
“A estabilidade das barragens não é apenas uma exigência técnica, mas uma obrigação legal e moral com a proteção da vida, do patrimônio e do meio ambiente”, diz Porreca, escolhendo cada palavra como quem carrega o peso de prevenir tragédias que já viraram cicatrizes na memória nacional.
Mariana. Brumadinho. Os nomes ecoam como advertências.
A Batalha de Ariquemes
Em Ariquemes, a CooperMetal se tornou o símbolo de uma queda de braço que se arrasta há quase uma década. Foi em 2016 que o Ministério Público Federal abriu o primeiro inquérito. Irregularidades foram identificadas. Prazos foram dados. Promessas foram feitas. E as correções? Vieram pela metade, em prestações, como quem paga uma dívida sempre adiando o saldo final.
Duas recomendações do MPF em 2023. Junho de 2024 chegou e as irregularidades persistiam, teimosas como a burocracia que parece protegê-las. A Agência Nacional de Mineração (ANM) havia concedido prorrogações, aceitando “justificativas técnicas e econômicas” — o tipo de linguagem que transforma urgências em processos administrativos.
Mas o MPF não estava mais para jogo. Moveu ação civil pública contra a CooperMetal, a NBF Mineração e a própria ANM. Três barragens sob responsabilidade de cooperativas — Igarapé Mutum, Rio Santa Cruz e Jacaré Médio — foram embargadas. A mensagem era clara: não há mais espaço para meio-termo quando se trata de estruturas classificadas como de risco e dano potencial médios desde 2022.
Houve vitória parcial: em 27 de dezembro de 2024, uma das barragens foi descaracterizada. O inquérito foi arquivado. Mas duas ainda permanecem no mapa da preocupação.
O Complexo do Madeira Acorda
No Complexo do Rio Madeira, onde as gigantescas usinas de Jirau e Santo Antônio bombeiam energia para o país, algo começou a mudar. Depois de cinco anos de pressão iniciada em 2019, o MPF finalmente viu seus Planos de Ação de Emergência (PAE) saírem do papel.
Elaborados em 2023, testados em 2024. Protocolos de evacuação, sistemas de alerta, mapeamento de áreas de risco — toda a engenharia burocrática necessária para que, se o pior acontecer, a tragédia não seja amplificada pelo despreparo.
A Declaração de Condição de Estabilidade (DCE) virou moeda de troca: sem ela, interdição e multa. O documento que atesta a segurança das estruturas deixou de ser apenas mais um papel numa gaveta para se tornar condição de operação.
2025: Ano da Prestação de Contas
Este é o ano da COP30 em Belém. Os holofotes do mundo estarão sobre a Amazônia. E Rondônia não quer entrar para a história como o estado que ignorou os avisos.
A proibição nacional de barragens construídas pelo método a montante — aquele mesmo que condenou Brumadinho — veio em 2019 pela ANM e ganhou força de lei federal em 2020. A Política Nacional de Segurança de Barragens foi fortalecida no papel. Agora o MPF a faz valer na prática, barragem por barragem, inquérito por inquérito.
Em Ariquemes, a Igarapé Mutum continua sem vertedouro adequado. Mas pela primeira vez em anos, há quem esteja vigiando cada dia de atraso, cada justificativa técnica, cada prorrogação concedida.
O procurador Porreca sabe que fiscalizar barragens não é apenas sobre concreto e cálculos hidráulicos. É sobre a diferença entre um sistema de alerta que funciona e famílias soterradas pela lama. Entre prevenção e luto coletivo.
A questão agora é simples, direta, inadiável: Rondônia vai aprender com as tragédias alheias ou vai esperar ter as suas próprias?



