Por Carolina Villela
Na abertura dos trabalhos do Supremo Tribunal Federal (STF), nesta sexta-feira (1), o presidente da Corte, ministro Luís Roberto Barroso, fez um pronunciamento em defesa da soberania nacional, da independência judicial e da democracia brasileira. Em seu discurso, Barroso traçou um panorama histórico das tentativas de ruptura institucional no país, desde os primeiros anos da República até os episódios recentes que culminaram nos atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023.
O ministro enfatizou que “as tentativas de quebra de institucionalidade nos acompanham desde os primeiros passos da República brasileira”, citando episódios como a renúncia de Deodoro da Fonseca em 1891 e as ameaças históricas ao Supremo Tribunal Federal. Para Barroso, esses fatos revelam três características marcantes da história política nacional: presidentes autoritários, militares envolvidos em política e constantes ameaças ao Poder Judiciário.
Memórias da ditadura e a importância da democracia
O presidente do STF relembrou vivências pessoais do período da ditadura militar, mencionando casos como o assassinato do jornalista Wladimir Herzog em outubro de 1975. “Nós vivemos uma ditadura. Ninguém me contou, eu estava lá”, declarou Barroso, ressaltando a importância do constitucionalismo e da democracia como “antídotos” contra os horrores do regime autoritário.
Em seu pronunciamento, o ministro descreveu detalhadamente as violações de direitos humanos ocorridas durante a ditadura, incluindo torturas, censura, desaparecimentos forçados e assassinatos simulados como suicídios. Barroso fez referência ao filme “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles, como exemplo da representação artística desse período sombrio da história brasileira.
O magistrado também mencionou episódios específicos de violência estatal, como o caso de uma jornalista presa aos 18 anos, grávida, mantida em cativeiro com uma cobra jiboia, e o Atentado do Riocentro em 1981, quando militares pretendiam explodir bombas durante um show de música popular brasileira.
Constituição de 1988: marco da estabilidade institucional
Segundo Barroso, a Constituição de 1988 proporcionou ao Brasil “o mais longo período de estabilidade institucional da nossa história republicana”. O ministro destacou que, mesmo enfrentando desafios como dois impeachments presidenciais, hiperinflação, planos econômicos fracassados e escândalos de corrupção, o país manteve o respeito à legalidade constitucional.
“Superamos as fases do atraso institucional. E é nosso papel impedir a volta ao passado”, afirmou o presidente da Corte, estabelecendo uma clara defesa do sistema democrático atual. Para ele, a Constituição cidadã representa um divisor de águas na história política brasileira, garantindo a continuidade das instituições mesmo em momentos de crise.
O magistrado enfatizou que, diferentemente dos períodos anteriores marcados por golpes e intervenções militares, a atual ordem constitucional tem se mostrado resiliente diante dos desafios políticos e econômicos enfrentados pelo país.
Episódios recentes: ameaças à democracia brasileira
Barroso dedicou os episódios ocorridos no país partir de 2019, que classificou como ataques à democracia: tentativas de atentados terroristas no aeroporto de Brasília, invasão à sede da Polícia Federal, tentativa de explosão no STF e acusações falsas de fraude eleitoral.
O presidente da Corte também citou a pressão exercida sobre as Forças Armadas para alterar relatórios que atestavam a segurança das urnas eletrônicas, as ameaças contra ministros do STF e os acampamentos em frente a quartéis, que resultaram na invasão e depredação dos três Poderes em 8 de janeiro de 2023.
De acordo com o ministro, investigações em curso apontam para uma tentativa de golpe que incluía planos para assassinar o presidente da República, o vice-presidente e um ministro do Supremo. “Foi necessário um tribunal independente e atuante para evitar o colapso das instituições”, declarou Barroso.
Defesa da atuação do STF e do ministro Alexandre de Moraes
O presidente da Corte fez questão de defender a condução dos processos relacionados aos ataques antidemocráticos, ressaltando que todas as ações penais têm sido conduzidas “com observância do devido processo legal, com transparência em todas as fases do julgamento”. Barroso enfatizou que as sessões são públicas, acompanhadas por advogados, imprensa e sociedade.
Especial reconhecimento foi dado ao ministro Alexandre de Moraes, relator das diversas ações penais relacionadas aos episódios antidemocráticos. “Com inexcedível empenho, bravura e custos pessoais elevados, conduziu ele as apurações e os processos”, afirmou Barroso, defendendo a atuação do colega que tem sido alvo de críticas e, recentemente, de sanções americanas.
O presidente do STF contrastou a atual abordagem judicial com os métodos utilizados durante a ditadura militar, ressaltando que “aqui não houve nenhum desaparecido, ninguém torturado, nem acusações sem provas”. Para Barroso, a imprensa permanece “inteiramente livre” e as plataformas digitais operam com “regulação equilibrada, que exclui apenas a prática de crimes e atos ilícitos”.
Contexto das sanções americanas contra Moraes
O pronunciamento de Barroso ocorre em um momento delicado para o STF, especialmente após o governo americano de Donald Trump ter sancionado o ministro Alexandre de Moraes por meio da Lei Magnitsky, nesta quarta-feira (29). A legislação americana é utilizada para punir ditadores, corruptos e violadores de direitos humanos, e as sanções foram justificadas pelos processos contra o ex-presidente Jair Bolsonaro e medidas envolvendo empresas de tecnologia.
Segundo interlocutores, durante jantar no Palácio da Alvorada na quinta-feira (31), quando o presidente Lula recebeu seis dos 11 ministros do STF, Moraes teria dispensado a ajuda do governo por meio da Advocacia-Geral da União (AGU), pelo menos por enquanto. O ministro sancionado não deseja ingressar com ação individual nos Estados Unidos antes de esgotar a fase política da questão.
Até o momento, Moraes não se pronunciou publicamente sobre as sanções impostas pelo governo americano, mantendo o foco nas atividades jurisdicionais da Corte.
Democracia constitucional como “fé racional”
Em sua conclusão, Barroso defendeu que o Brasil representa “um dos poucos casos no mundo em que um tribunal, ao lado da sociedade civil, da imprensa e de parte da classe política, conseguiu evitar uma grave erosão democrática”. Para o ministro, essa atuação foi fundamental para preservar as instituições sem causar abalos ao sistema democrático.
O presidente da Corte reafirmou os princípios democráticos fundamentais, lembrando que “a democracia tem lugar para todos: conservadores, liberais e progressistas. Ninguém tem o monopólio da virtude ou do amor ao Brasil”. Segundo sua visão, “quem ganha as eleições leva, quem perde pode tentar ganhar nas eleições seguintes”, desde que todos respeitem “as regras do jogo e os direitos fundamentais”.
Barroso encerrou seu pronunciamento definindo a democracia constitucional como a “nossa causa, a nossa fé racional”, um valor que “não pode ser negociado”. O discurso representa uma defesa clara do papel do STF como guardião da Constituição e da ordem democrática, em um momento de tensões políticas e pressões externas sobre a atuação da Corte suprema do país.