Por Carolina Villela
O Supremo Tribunal Federal (STF) retomou nesta quinta-feira (22) o julgamento que discute a norma do Estatuto dos Militares que proíbe o acesso de pessoas casadas, em união estável ou com dependentes aos cursos de formação militar em regime de internato. O relator, ministro Luiz Fux, votou pela inconstitucionalidade da regra, sendo acompanhado pelo ministro Flávio Dino.
O tema é analisado no Recurso Extraordinário (RE) 1530083, com repercussão geral reconhecida. Os ministros que já se manifestaram consideraram a norma discriminatória e incompatível com os princípios constitucionais da igualdade e dignidade humana, questionando se o estado civil deve ser critério para determinar a aptidão militar de um candidato.
O julgamento foi suspenso para intervalo regimental e será retomado ainda nesta tarde com os votos dos demais ministros.
Tese proposta
O ministro Luiz Fux propôs a seguinte tese:
“É inconstitucional o artigo 144-A da Lei nº 6.880/1990, ao condicionar o ingresso e a permanência nos órgãos de formação ou graduação de oficiais e praças, ainda que em regime de internato, de dedicação exclusiva e de disponibilidade permanente peculiar à carreira militar, à inexistência de vínculo conjugal, de união estável, de maternidade, de paternidade e de dependência socioafetiva.”
Ministros criticam discriminação baseada em estado civil
O ministro Luiz Fux foi enfático ao ressaltar que não há evidências de que ser casado ou ter filhos torne o candidato menos apto a desempenhar funções militares. Pelo contrário, o relator argumentou que a experiência familiar pode contribuir com responsabilidades, disciplina e outros atributos essenciais à carreira militar, afirmando que “a norma, em vez de promover eficiência e qualidade do serviço militar, promove discriminação e exclusão”.
Fux destacou ainda que países com regras semelhantes possuem democracias “muito duvidosas”, citando informações da Advocacia-Geral da União sobre restrições similares na Índia, Angola, Nigéria, Paquistão, Equador e Peru. O ministro reforçou que a Constituição brasileira deve ser sempre lembrada como fundamentada nos princípios da igualdade e dignidade humana.
O ministro Flávio Dino acompanhou o entendimento do relator, comparando a situação com outras profissões que demandam longas ausências, como garimpeiros e motoristas de caminhão. Para Dino, a regra geral para cargos públicos é a acessibilidade, e quando uma norma impede isso há afronta direta à Constituição Federal.
Realidade social brasileira como argumento judicial
O relator ressaltou que há muita solidariedade entre as famílias, principalmente quando a pessoa que ingressa na carreira militar é quem vai sustentar a casa, destacando que “não há internato que possa interditar a ajuda da família”.
Dino concordou e também ressaltou a importância do mútuo apoio familiar. Ao abordar a realidade social brasileira, argumentou que as desigualdades sociais já provocam o afastamento das pessoas de suas famílias. O ministro escreveu que “não há internato pior do que a vida de um trabalhador brasileiro na metrópole, em que ele praticamente não vê a sua família”, descrevendo a rotina de passar horas em deslocamento nos transportes públicos como uma das tragédias das sociedades brasileiras.
O caso concreto analisado envolve um militar casado que recorre contra decisão do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, que manteve a validade do edital do Curso de Formação e Graduação de Sargentos com as exigências contestadas.
Defesa alega violação de direitos fundamentais
Durante as sustentações orais da semana anterior, o advogado Flávio André Alves Brito argumentou que a norma é discriminatória e viola princípios constitucionais fundamentais como dignidade da pessoa humana, igualdade e proteção à família. O defensor considerou a regra uma restrição desproporcional ao direito de acesso a cargos públicos.
“Não se pode impedi-los de realizar por constituir uma família, por ser pai e por ser mãe”, declarou o advogado, argumentando que não cabe ao Estado pré-julgar que cidadãos casados sejam incapazes de conciliar vida militar com familiar. Segundo ele, essa capacidade deve ser avaliada individualmente, não através de vedação geral baseada no estado civil.
O defensor Vinícius Lúcio de Andrade observou que a exigência só surgiu em 2019, sendo que proposta similar já havia sido rejeitada em 2012. Ele destacou ainda que não há essa restrição em recrutamentos de outras Forças Armadas mundiais, rebatendo alegações sobre impacto financeiro ao orçamento.
AGU defende necessidade da restrição militar
Ana Luíza Pavão, representando a Advocacia-Geral da União, defendeu a constitucionalidade da norma com base no “regime jurídico, histórico funcional e necessário para a carreira militar”. A advogada argumentou que a atividade militar envolve sacrifício, compromisso com a Pátria e dedicação integral, justificando as peculiaridades específicas para ingresso nas Forças Armadas.
A representante da AGU enfatizou que não há impedimento para cursos realizados em regime de externato, como nas escolas de formação do Exército e da Marinha, demonstrando que a restrição se aplica apenas aos cursos em regime de internato. Segundo Pavão, esses cursos exigem formação excepcional e preparação técnica, física, moral e disciplinar rigorosa.
Pavão argumentou que os alunos não retornam para casa diariamente, não têm convivência familiar regular e precisam estudar em regime de internato com duração de dois a cinco anos, exigindo dedicação exclusiva. A advogada alertou sobre consequências práticas caso o STF considere a norma inconstitucional.
Ana Luíza Pavão alertou que declarar a norma inconstitucional exigiria que as Forças Armadas reformulem toda a estrutura de formação militar existente, comprometendo a logística dos cursos e a eficácia operacional. Segundo ela, a mudança acarretaria risco aumentado de evasão dos cursos.