Da Redação
Uma decisão da Justiça de São Paulo reacendeu o debate sobre o reconhecimento legal de relacionamentos poliamorosos no Brasil. A juíza Rossana Teresa Curioni Mergulhão, da 1ª Vara Cível de Bauru, validou um contrato de União Estável Poliafetiva envolvendo três pessoas, contrariando diretriz do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que proíbe cartórios de lavrar esse tipo de documento desde 2018.
O caso expõe uma contradição no sistema jurídico brasileiro: enquanto o CNJ mantém posição restritiva baseada no princípio da monogamia, algumas decisões judiciais pontuais têm permitido formas limitadas de reconhecimento desses relacionamentos. A decisão, no entanto, não constitui reconhecimento pleno como entidade familiar com os mesmos direitos do casamento tradicional.
CNJ proíbe registros desde 2018
O Conselho Nacional de Justiça decidiu em 2018, por 8 votos a 6, impedir que cartórios de todo o país lavrem documentos declarando união estável entre mais de duas pessoas. A decisão foi tomada após pedido da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS), que argumenta que a Constituição e o Código Civil brasileiro impõem a monogamia no casamento e na união estável.
A ministra Cármen Lúcia, então presidente do CNJ, ressalvou na época que “não é atribuição do CNJ tratar da relação entre as pessoas, mas do dever e do poder dos cartórios de lavrar escrituras”. A ADFAS classifica as uniões poliamorosas como “institucionalização da poligamia” e defende que expressões como “poliamor” apenas suavizam relações extraconjugais.
Para a associação, reconhecer esses relacionamentos significaria atribuir direitos de família e sucessórios a relações formadas entre três ou mais pessoas, incluindo direito à pensão alimentícia e reparação por danos morais e materiais. A entidade critica o que chama de “monetarização do afeto” e “oportunismo sexual e financeiro”.
Decisão de São Paulo abre precedente
Na contramão da orientação do CNJ, a decisão da juíza de Bauru validou o registro de um trisal em Cartório de Registro de Títulos e Documentos (RTD). A magistrada fundamentou a decisão no princípio de que “nas relações entre particulares, é permitido fazer tudo aquilo que a lei não proíbe expressamente”.
O documento oficializado visa apenas dar publicidade ao acordo privado entre as três pessoas, permitindo que seja reconhecido perante outras pessoas ou entidades. Importante frisar que a decisão não garante os mesmos direitos e deveres do casamento ou união estável monogâmica tradicional.
Casos similares têm surgido em outros estados. Em 2023, a 2ª Vara de Família de Novo Hamburgo (RS) reconheceu uma união estável poliafetiva entre um homem e duas mulheres que viviam juntos há mais de dez anos. O casal buscava o direito ao registro multiparental de um filho que esperavam.
Futuro incerto para relacionamentos poliamorosos
Especialistas apontam contradições no sistema jurídico brasileiro. Enquanto o Supremo Tribunal Federal admite a multiparentalidade (registro de crianças com mais de um pai ou mãe), não reconhece direitos decorrentes da multiconjugalidade. Para o advogado Marcos Alves da Silva, do Instituto Brasileiro de Direito de Família, “reconhece-se uma família pela metade”.
A realidade social mostra crescimento desses arranjos familiares. Mais de 30 trisais de diferentes configurações (incluindo três homens, três mulheres ou combinações mistas) se preparam para um encontro nacional, demonstrando que essa realidade existe independentemente do reconhecimento legal.
Até que haja posicionamento definitivo do Supremo Tribunal Federal – similar ao que ocorreu com uniões homoafetivas em 2011 – trisais podem buscar alternativas como contratos particulares, escrituras de imóveis conjuntas ou constituição de empresas para resguardar direitos patrimoniais. O relacionamento entre três ou mais pessoas não constitui crime, sendo considerado escolha individual dos envolvidos.