O professor Ugo Mattei, das Universidades da Califórnia e de Turim, ministrou palestra em Brasília sobre proteção dos bens comuns nacionais. O evento, na sede do Instituto de Direito Público, contou com participação de Alexandre Kassama, diretor do Colégio Notarial do Brasil, e professores universitários. Mattei defendeu que operadores do Direito têm papel fundamental para impedir expropriação da coletividade através de privatizações de serviços essenciais como água potável e energia elétrica.
Para o acadêmico italiano, Estados que concedem gestão de serviços básicos à iniciativa privada estão vendendo bens que não lhes pertencem. Editor-geral do projeto Common Core of European Private Law desde 1993 e fellow do European Law Institute, Mattei baseia sua argumentação em experiências europeias em que cidadãos já reconheceram necessidade de manter bens comuns sob controle público. Segundo sua tese, privatizações representam expropriação da comunidade, uma vez que esses recursos são patrimônio coletivo.
Referendo italiano rejeitou privatização da água
Mattei participou ativamente do referendo realizado na Itália em 2011 sobre gestão hídrica nacional. A consulta popular resultou em 95% de rejeição à venda da administração da água para setor privado. O resultado demonstrou consciência da população sobre importância de manter controle público sobre recursos essenciais à vida.
Levantamento do Transnational Institute, centro holandês de estudos em democracia, identificou pelo menos 886 reestatizações desde 2000. O movimento global abrange principalmente serviços de água e energia que retornaram ao controle estatal. As reversões ocorrem devido à má qualidade dos serviços privados e tarifas elevadas praticadas pelas empresas.
O professor teve papel preponderante na criação do estatuto jurídico que viabilizou reestatizações na Itália. Durante a apresentação, explicou como operadores do Direito contribuíram para construção deste novo framework legal. O processo exigiu reinvenção de institutos jurídicos clássicos para viabilizar retorno de serviços ao controle público.
Direito precisa ir além do lucro individual
Mattei explicou que historicamente o Direito serviu como infraestrutura para transformar natureza em propriedade privada. Esta lógica funcionou durante muito tempo e ajudou a gerar riquezas individuais significativas. Entretanto, atual concentração de riqueza nas mãos de poucos indivíduos e corporações exige nova abordagem jurídica.
“Mattei teve inventar estruturas jurídicas na Itália que não estavam expressamente previstas para fazer o processo de reestatização”, afirmou Alexandre Kassama. Segundo o diretor do CNB, “as leis só previam o caminho inverso, do comum para o privado”. Notários, juízes e outros operadores do Direito tiveram papel fundamental na reinvenção desses institutos.
A proposta envolve criação de infraestrutura jurídica baseada no bem comum, superando foco exclusivo no lucro. Para o acadêmico, é responsabilidade de notários e juízes construir discurso jurídico que transcenda interesses meramente econômicos. A mudança de paradigma exige revisão profunda dos fundamentos do Direito contemporâneo.
Notariado como bem comum institucional
Na visão de Mattei, o próprio notariado representa bem comum que deve ser preservado pela sociedade. A instituição possui papel institucional eficiente que frequentemente não encontra substituto adequado na advocacia privada. Esta perspectiva amplia conceito de bens comuns para além de recursos naturais e serviços públicos.
A defesa do notariado como bem comum reflete entendimento de que certas instituições jurídicas garantem equilíbrio social. O professor argumenta que privatização desenfreada pode comprometer estruturas fundamentais do Estado de Direito. A manutenção de instituições públicas fortes seria essencial para proteção dos interesses coletivos.
O evento no IDP destacou necessidade de repensar relação entre público e privado no Direito brasileiro. As experiências internacionais de reestatização demonstram viabilidade de reversão de privatizações mal-sucedidas. Operadores jurídicos brasileiros podem se inspirar em modelos europeus para fortalecer proteção dos bens comuns nacionais.