Publicar artigo

Quando o espectador é o jurado

Jeffis Carvalho Por Jeffis Carvalho
9 de maio de 2025
no Direito à Arte
0
Quando o espectador é o jurado

Por Jeffis Carvalho

Uma das melhores obras do cinema nesta década, Anatomia de uma Queda, Palma de Ouro no Festival de Cannes 2023, da diretora francesa Justine Triet, é uma obra-prima que subverte a clássico filme de tribunal. Em pouco mais de duas horas, vemos também a anatomia de uma narrativa, com suas lacunas, ambiguidades e dúvidas. Cabe a cada um nós dar o veredito.

LEIA TAMBÉM

“O fim da impunidade? Nossa democracia sai mais forte?”, pergunta Jeffis Carvalho

E o algoritmo agora me traz a voz de Juliana Linhares, escreve Jeffis Carvalho

À procura do júri

O plano geral mostra uma cena comum em todo chamado filme de tribunal. Estamos diante do cenário de um julgamento. Em um degrau acima dos demais, a juíza e, concluímos, também os jurados.  Acusação e Defesa na mesma altura, e só se destacam quando estão com a palavra porque falam em pé. As testemunhas dão seus depoimentos sentadas ao centro. Vemos a ré em uma posição de destaque, praticamente no mesmo nível da juíza. Como em todo julgamento aberto, temos, claro, a plateia.

De repente nosso olhar escrutina o plano geral, e ainda mais os planos fechados, à procura de algo que parece não interessar muito à câmera nesse cenário de tribunal. Sentimos um estranhamento e não sabemos ainda bem a razão. Quando a montagem da sequência fica mais dinâmica, com planos gerais e cortes mais intercalados, dos planos médios para os closes, e essa edição assume o clássico propósito de nos guiar ao possível entendimento, começamos a tatear o que estranhamos. Aos poucos nos damos conta do que estranhamos nessa sequência em que ora vemos a ré, ora vemos os advogados, ou a plateia atenta, ou os comentários da juíza. Os cortes dos planos nunca destacam os jurados – não vemos suas reações, não percebemos o que podem estar pensando diante daquele julgamento, que já aprendemos, com o próprio cinema, que são de fato um embate de narrativas.

Com esse estranhamento percebemos aos poucos que não estamos assistindo a um filme de tribunal comum. Muito pelo contrário. A diretora Justine Triet faz de Anatomia de uma Queda uma obra que subverte o clássico filme de tribunal, com roteiro premiado com o Oscar, de autoria dela e de seu marido, o também cineasta e roteirista Arthur Harari.  Por isso não vemos quase nunca os jurados e vamos sentindo tudo estranho até que entendemos a proposta. Nós somos os jurados. Com maestria, Justine nos coloca nessa posição e parece nos dizer que hoje, nesse cenário contemporâneo, em que as redes sociais se tornaram os maiores e mais terríveis jurados, todo julgamento é efetivamente uma disputa de narrativas – sejam as da defesa, as da acusação, as da imprensa que cobre o fato; mas, principalmente, aquelas forjadas nas redes sociais, quando todo e qualquer um acusa, defende, opina, julga, absolve e, na maioria das vezes, condena.

Mas, claro, nós, o público, somos privilegiados. Diferente dos jurados do tribunal, temos acesso à principal narrativa em questão, a do próprio filme. Como somos testemunhas do que vai se passando – que ninguém naquele tribunal, nem os advogados, nem a juíza, a plateia, as testemunhas, os jurados, e a própria ré têm total conhecimento, somos também cúmplices do jogo proposto pela cineasta e logo nos sentimos, se não coautores, espectadores com uma enorme vantagem em relação aos personagens. Até que finalmente, quando talvez a soberba comprometa nosso olhar e a compreensão real dos fatos, nos vemos diante da genialidade de Justine Triet como artista a nos indagar o que é verdade: o que é ficção? E, no limite, o que é (uma) narrativa.

Mas vamos, primeiro, aos fatos. Os da história contada e os da forma como são narrados.

Sandra, uma escritora alemã, e Samuel, seu marido francês e professor, vivem juntos com Daniel, o filho de 11 anos do casal, deficiente visual, em uma pequena e isolada cidade nos Alpes franceses. Quando Samuel é encontrado morto sobre a neve diante de sua casa, a polícia passa a tratar o caso como um suposto homicídio.

Sandra (Sandra Hüller) é a principal suspeita da morte do marido. Divulgação

Samuel caiu do sótão onde trabalhava? Pulou? Ou foi empurrado?

Acidente, suicídio ou assassinato?

A partir dessas questões aparentemente simples, Justine Trier tece uma narrativa composta de outras narrativas na tentativa de nos guiar a fazer uma escolha. Se a resposta que daremos ao final do filme é satisfatória não depende dela, nem do próprio filme. Depende de cada um de nós e de nossa capacidade de compreensão. E de julgamento.

Anatomia de uma Queda está disponível no streaming, nas plataformas Apple TV e Prime Vídeo.

Autor

  • Jeffis Carvalho
    Jeffis Carvalho

Post Views: 98
Tags: Anatomia de uma quedacritica cinemafilmesextou

Relacionados Posts

bolsonáro aparece diáfano como se estivesse pairando sobre a cena de destruição junto com os outros oficiais militares da Trama Golpista
Direito à Arte

“O fim da impunidade? Nossa democracia sai mais forte?”, pergunta Jeffis Carvalho

12 de setembro de 2025
Juliana Linhares,
Direito à Arte

E o algoritmo agora me traz a voz de Juliana Linhares, escreve Jeffis Carvalho

5 de setembro de 2025
Filme O Clube do Crime das Quintas-Feiras
Direito à Arte

Estreia traz o charme britânico para a Netflix, escreve Jeffis Carvalho

29 de agosto de 2025
Luca Marinelli é Benito Mussolini em M, O Filho do Século
Direito à Arte

MUBI estreia série sobre Mussolini em setembro, escreve Jeffis Carvalho

22 de agosto de 2025
A cineasta Sandra Kogut decifra as tensões eleitorais de 2022
Direito à Arte

O filme de um Brasil muito tenso, escreve Jeffis Carvalho

15 de agosto de 2025
O publicitário Roger Tornhill (Cary Grant) perseguido por um avião
Direito à Arte

O meu Hitchcock preferido, escreve Jeffis Carvalho

8 de agosto de 2025
Próximo Post
STF forma maioria para manter ação penal contra Ramagem e Bolsonaro

STF forma maioria para manter ação penal contra Ramagem e Bolsonaro

NOTÍCIAS POPULARES

Sem conteúdo disponível

ESCOLHIDAS PELO EDITOR

Jair Bolsonaro entre seus advogados

Defesa de Bolsonaro promete responder Moraes sobre risco de fuga em 48 horas

21 de agosto de 2025
Barroso lança manual do Nusol e provoca ciúmes entre ministros sobre autoria do Núcleo

Barroso lança manual do Nusol e provoca ciúmes entre ministros sobre autoria do Núcleo

28 de agosto de 2025
TJSP nega indenização a parentes de morta enterrada como desconhecida por avançada decomposição do corpo

TJSP nega indenização a parentes de morta que precisou ser enterrada como desconhecida por decomposição do corpo

7 de julho de 2025
Mais um pedido da defesa de Braga Neto é negado por Alexandre de Moraes

Mais um pedido da defesa de Braga Neto é negado por Alexandre de Moraes

22 de janeiro de 2025
  • STF
  • Hora do Cafezinho
  • Palavra de Especialista
  • OAB
  • Congresso Nacional
  • Artigos
  • STF
  • Hora do Cafezinho
  • Palavra de Especialista
  • OAB
  • Congresso Nacional
  • Artigos
  • Quem somos
  • Equipe
  • Política de Respeito à Privacidade
  • Fale Conosco
  • Artigos
  • Quem somos
  • Equipe
  • Política de Respeito à Privacidade
  • Fale Conosco
  • Artigos

Hora Jurídica Serviços de Informação e Tecnologia Ltda. – CNPJ 58.084.027/0001-90, sediado no Setor Hoteleiro Norte, Quadra 1, lote “A”, sala 220- Ed. Lê Quartier, CEP:70.077-000 – Asa Norte – Brasília-DF

Contato: 61 99173-8893

© 2025 Todos direitos reservados | HJUR Hora Jurídica

Maximum file size: 2 MB
Publicar artigo
  • STF
  • Hora do Cafezinho
  • Palavra de Especialista
  • OAB
  • Congresso Nacional
  • Artigos
  • STF
  • Hora do Cafezinho
  • Palavra de Especialista
  • OAB
  • Congresso Nacional
  • Artigos
Sem Resultados
Ver todos os Resultados
  • STF
  • Hora do Cafezinho
  • Palavra de Especialista
  • OAB
  • Congresso Nacional
  • Artigos

© 2025 Todos direitos reservados | HJUR Hora Jurídica