Quando o espectador é o jurado

Há 6 meses
Atualizado sexta-feira, 15 de agosto de 2025

Por Jeffis Carvalho

Uma das melhores obras do cinema nesta década, Anatomia de uma Queda, Palma de Ouro no Festival de Cannes 2023, da diretora francesa Justine Triet, é uma obra-prima que subverte a clássico filme de tribunal. Em pouco mais de duas horas, vemos também a anatomia de uma narrativa, com suas lacunas, ambiguidades e dúvidas. Cabe a cada um nós dar o veredito.

À procura do júri

O plano geral mostra uma cena comum em todo chamado filme de tribunal. Estamos diante do cenário de um julgamento. Em um degrau acima dos demais, a juíza e, concluímos, também os jurados.  Acusação e Defesa na mesma altura, e só se destacam quando estão com a palavra porque falam em pé. As testemunhas dão seus depoimentos sentadas ao centro. Vemos a ré em uma posição de destaque, praticamente no mesmo nível da juíza. Como em todo julgamento aberto, temos, claro, a plateia.

De repente nosso olhar escrutina o plano geral, e ainda mais os planos fechados, à procura de algo que parece não interessar muito à câmera nesse cenário de tribunal. Sentimos um estranhamento e não sabemos ainda bem a razão. Quando a montagem da sequência fica mais dinâmica, com planos gerais e cortes mais intercalados, dos planos médios para os closes, e essa edição assume o clássico propósito de nos guiar ao possível entendimento, começamos a tatear o que estranhamos. Aos poucos nos damos conta do que estranhamos nessa sequência em que ora vemos a ré, ora vemos os advogados, ou a plateia atenta, ou os comentários da juíza. Os cortes dos planos nunca destacam os jurados – não vemos suas reações, não percebemos o que podem estar pensando diante daquele julgamento, que já aprendemos, com o próprio cinema, que são de fato um embate de narrativas.

Com esse estranhamento percebemos aos poucos que não estamos assistindo a um filme de tribunal comum. Muito pelo contrário. A diretora Justine Triet faz de Anatomia de uma Queda uma obra que subverte o clássico filme de tribunal, com roteiro premiado com o Oscar, de autoria dela e de seu marido, o também cineasta e roteirista Arthur Harari.  Por isso não vemos quase nunca os jurados e vamos sentindo tudo estranho até que entendemos a proposta. Nós somos os jurados. Com maestria, Justine nos coloca nessa posição e parece nos dizer que hoje, nesse cenário contemporâneo, em que as redes sociais se tornaram os maiores e mais terríveis jurados, todo julgamento é efetivamente uma disputa de narrativas – sejam as da defesa, as da acusação, as da imprensa que cobre o fato; mas, principalmente, aquelas forjadas nas redes sociais, quando todo e qualquer um acusa, defende, opina, julga, absolve e, na maioria das vezes, condena.

Mas, claro, nós, o público, somos privilegiados. Diferente dos jurados do tribunal, temos acesso à principal narrativa em questão, a do próprio filme. Como somos testemunhas do que vai se passando – que ninguém naquele tribunal, nem os advogados, nem a juíza, a plateia, as testemunhas, os jurados, e a própria ré têm total conhecimento, somos também cúmplices do jogo proposto pela cineasta e logo nos sentimos, se não coautores, espectadores com uma enorme vantagem em relação aos personagens. Até que finalmente, quando talvez a soberba comprometa nosso olhar e a compreensão real dos fatos, nos vemos diante da genialidade de Justine Triet como artista a nos indagar o que é verdade: o que é ficção? E, no limite, o que é (uma) narrativa.

Mas vamos, primeiro, aos fatos. Os da história contada e os da forma como são narrados.

Sandra, uma escritora alemã, e Samuel, seu marido francês e professor, vivem juntos com Daniel, o filho de 11 anos do casal, deficiente visual, em uma pequena e isolada cidade nos Alpes franceses. Quando Samuel é encontrado morto sobre a neve diante de sua casa, a polícia passa a tratar o caso como um suposto homicídio.

Sandra (Sandra Hüller) é a principal suspeita da morte do marido. Divulgação

Samuel caiu do sótão onde trabalhava? Pulou? Ou foi empurrado?

Acidente, suicídio ou assassinato?

A partir dessas questões aparentemente simples, Justine Trier tece uma narrativa composta de outras narrativas na tentativa de nos guiar a fazer uma escolha. Se a resposta que daremos ao final do filme é satisfatória não depende dela, nem do próprio filme. Depende de cada um de nós e de nossa capacidade de compreensão. E de julgamento.

Anatomia de uma Queda está disponível no streaming, nas plataformas Apple TV e Prime Vídeo.

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