Por Carolina Villela
O Supremo Tribunal Federal (STF) declarou inconstitucional nesta quarta-feira (27) a norma do Estatuto dos Militares que proibia o acesso de pessoas casadas, em união estável ou com dependentes aos cursos de formação militar em regime de internato. A decisão unânime foi tomada no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1530083 com repercussão geral.
O relator, ministro Luiz Fux, foi acompanhado por todos os colegas da Corte, que consideraram a regra discriminatória e incompatível com os princípios constitucionais da igualdade e dignidade humana. Os ministros modularam os efeitos da decisão, que terá caráter ex-nunc, ou seja, não possui efeito retroativo, e asseguraram que o autor da ação possa participar do próximo concurso militar.
Tese aprovada estabelece novo paradigma constitucional
O ministro Luiz Fux propôs a seguinte tese: “É inconstitucional o art. 144-A da lei 6.880/80 (Estatuto dos Militares), ao condicionar o ingresso e a permanência nos órgãos de formação ou graduação de oficiais e de praças – ainda que em regime de internato e de dedicação exclusiva, ou de disponibilidade permanente, peculiar à carreira militar – à inexistência de vínculo conjugal, de união estável, de maternidade, paternidade e de dependência sócio-afetiva.”
Em seu voto, o relator ressaltou que não há evidências de que ser casado ou ter filhos torne o candidato menos apto a desempenhar funções militares, argumentando que a experiência familiar pode contribuir com responsabilidades, disciplina e outros atributos essenciais à carreira militar.
Ministros criticam discriminação e destacam aspectos sociais
O ministro André Mendonça classificou a regra como desproporcional, inconstitucional e que desestimula a constituição familiar. Alexandre de Moraes foi direto ao afirmar que não há nada que justifique a norma, considerando-a claramente inconstitucional.
Dias Toffoli sugeriu que a tese abordasse situações excepcionais e devidamente justificadas para editais que apresentem a exigência. A ministra Cármen Lúcia classificou o caso como “inconstitucionalidade por susto ou arrepio”, expressão que usou para descrever a surpresa dos ministros com a existência de norma tão restritiva.
Flávio Dino comparou a situação com outras profissões que demandam longas ausências, como garimpeiros e motoristas de caminhão, reforçando que a regra geral para cargos públicos é a acessibilidade. Para o ministro, quando uma norma impede esse acesso há afronta direta à Constituição Federal.
Realidade social brasileira como argumento central
O relator destacou a importância da solidariedade familiar, especialmente quando a pessoa que ingressa na carreira militar é responsável pelo sustento da casa, afirmando que “não há internato que possa interditar a ajuda da família”. O argumento reconhece a realidade socioeconômica brasileira, onde o ingresso na carreira militar muitas vezes representa oportunidade de mobilidade social.
Dino complementou ressaltando a importância do mútuo apoio familiar e abordou criticamente a realidade social brasileira, argumentando que as desigualdades sociais já provocam afastamento das pessoas de suas famílias. O ministro foi contundente ao escrever que “não há internato pior do que a vida de um trabalhador brasileiro na metrópole, em que ele praticamente não vê a sua família”.
Argumentos da defesa prevalecem sobre resistência da AGU
Durante as sustentações orais, o advogado Flávio André Alves Brito havia argumentado que a norma violava princípios constitucionais fundamentais como dignidade da pessoa humana, igualdade e proteção à família. Ele ressaltou que “não se pode impedi-los de realizar por constituir uma família, por ser pai e por ser mãe”.
O defensor Vinícius Lúcio de Andrade havia destacado que a exigência só surgiu em 2019, sendo que proposta similar já havia sido rejeitada em 2012. Ele também enfatizou que não há essa restrição em recrutamentos de outras Forças Armadas mundiais, argumento que fortaleceu a tese da inconstitucionalidade.
AGU alertou para impactos operacionais sem sucesso
Ana Luíza Pavão, da Advocacia-Geral da União, havia defendido a constitucionalidade da norma com base no “regime jurídico, histórico funcional e necessário para a carreira militar”. Ela argumentou que a atividade militar envolve sacrifício, compromisso com a Pátria e dedicação integral, justificando as peculiaridades específicas.
A representante da AGU enfatizou que a restrição se aplicava apenas aos cursos em regime de internato, que exigem formação excepcional e preparação técnica, física, moral e disciplinar rigorosa. Pavão alertou que declarar a norma inconstitucional exigiria reformulação de toda a estrutura de formação militar existente.
Caso concreto
O caso concreto que chegou ao STF envolvia militar casado que recorreu contra decisão do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, que havia mantido a validade do edital do Curso de Formação e Graduação de Sargentos com as exigências contestadas. O autor teve a ação aceita parcialmente e, com a decisão, poderá participar do próximo concurso.