Por Carolina Villela
O Supremo Tribunal Federal (STF) definiu nesta quarta-feira (27) que crianças e adolescentes não devem ser repatriados imediatamente ao exterior quando há casos de indícios de violência doméstica, ainda que a criança não seja a vítima direta. Na semana passada, a Corte já havia formado maioria contra a repatriação nessas situações.
Durante o julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade 4245 e 7686, todos os ministros acompanharam o entendimento do relator Luís Roberto Barroso, que prioriza o melhor interesse da criança e incorpora perspectiva de gênero na análise judicial. A tese aprovada estabelece que indícios objetivos e concretos de violência doméstica são suficientes para impedir o retorno imediato dos menores, mesmo quando não são vítimas diretas das agressões.
Tese
1. A Convenção da Haia de 1980 sobre os aspectos civis da subtração internacional de crianças é compatível com a Constituição Federal, possuindo status supralegal no ordenamento jurídico brasileiro, por sua natureza de tratado internacional de proteção de direitos da criança.
2. A aplicação da Convenção no Brasil, à luz do princípio do melhor interesse da criança (art. 227, CF), exige a adoção de medidas estruturais e procedimentais para garantir a tramitação célere e eficaz das ações sobre restituição internacional de crianças.
3. A exceção de risco grave à criança, prevista no art. 13 (1) (b) da Convenção da Haia de 1980, deve ser interpretada de forma compatível com o princípio do melhor interesse da criança (art. 227, CF) e com perspectiva de gênero, de modo a admitir sua aplicação quando houver indícios objetivos e concretos de violência doméstica, ainda que a criança não seja vítima direta.”
Mudanças estruturais no sistema judiciário
O STF determinou uma série de medidas estruturais para aprimorar o sistema de proteção. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) terá 60 dias para criar grupo de trabalho especializado para elaborar resolução para agilizar a tramitação das ações de restituição internacional, assegurando mediante contraditório e ampla defesa, que a decisão final sobre o retorno seja tomada em prazo não superior a um ano; também servirão como elementos de convicção os elementos públicos e notórios e as regras de experiência.
Os Tribunais Regionais Federais deverão editar atos normativos para concentrar a competência desses processos em varas especializadas da capital e turmas específicas. A medida visa garantir maior especialização e celeridade no tratamento desses casos complexos, que envolvem questões de direito internacional e proteção de direitos fundamentais.
Serão instituídos também núcleos de apoio especializado nos tribunais para incentivar a conciliação e adoção de práticas restaurativas, atuando como instância de apoio técnico ao magistrado. Os sistemas de processos eletrônicos devem ser ajustados para que todos os casos relacionados à Convenção da Haia recebam selo de tramitação preferencial.
Perspectiva de gênero
O ministro Dias Tóffoli foi enfático ao defender que suspeitas de violência doméstica contra a mãe já configuram risco suficiente para impedir a repatriação. Sua proposta dispensa provas mais robustas e inclui dar “peso diferenciado à palavra da mulher”, reconhecendo as dificuldades específicas enfrentadas pelas vítimas de violência doméstica em países estrangeiros.
Alexandre de Moraes reforçou a necessidade de considerar o machismo estrutural como causador da violência, argumentando que a proteção dos direitos fundamentais das crianças deve ser prioridade absoluta. O ministro votou pela compatibilidade do tratado internacional com a Constituição Federal, mas contra a possibilidade de retorno imediato quando há indícios de violência doméstica contra a genitora.
André Mendonça consolidou o entendimento ao afirmar que “a violência contra uma mãe, ela também é por si só contra a criança”, destacando o impacto direto das agressões contra a genitora nos menores. O ministro propôs ainda que a Advocacia-Geral da União (AGU) reavalie sua representação quando verificados elementos de violência.
Dados alarmantes revelam dimensão do problema
O ministro Edson Fachin trouxe estatísticas impactantes ao debate, destacando que 88% dos casos envolvem mulheres que escaparam de situações de risco grave. Os números revelam a dimensão do problema e justificam a necessidade de mudança na interpretação da Convenção da Haia, que até então priorizava o retorno imediato dos menores sem considerar adequadamente o contexto de violência doméstica.
Fachin enfatizou que, apesar das políticas já adotadas, o índice de violência contra mulheres no Brasil permanece alarmante, reforçando a proposta de criar mecanismos no exterior para que as vítimas tenham apoio adequado. O ministro Luiz Fux complementou sugerindo que o juiz possa conceder tutela de urgência para reforçar a proteção da mulher vítima de violência doméstica.
A Corte reconheceu ainda que a Justiça deve utilizar regras de experiência comum em relação a países e culturas que colocam as mães em patamares de discriminação, elemento fundamental para a análise judicial. Segundo Fux, bastam fatos concretos ou notórios de violência para fundamentar a decisão de não repatriar os menores.
Contexto jurídico e impacto da decisão
A Convenção da Haia sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças, ratificada pelo Brasil, estabelece mecanismos para o retorno de menores levados de seus países de residência habitual. As ADIs julgadas questionavam interpretações que poderiam colocar crianças em risco, buscando abordagem mais protetiva.
A ADI 4245, apresentada pelos Democratas (atual União Brasil), contestava os decretos que ratificaram a adesão brasileira ao tratado, alegando interpretações equivocadas. A ADI 7686, proposta pelo PSOL, buscava garantir que crianças não fossem obrigadas a retornar quando houvesse suspeita de violência doméstica, mesmo sendo vítimas indiretas.