Da redação
O Supremo Tribunal Federal (STF) avançou nesta quarta-feira (24) no julgamento que pode definir os limites para quebra de sigilo de dados de usuários da internet. Os ministros Gilmar Mendes e Nunes Marques votaram para permitir a quebra ampla de sigilo digital apenas em investigações de crimes hediondos, estabelecendo critérios para essa modalidade de investigação. O julgamento do recurso extraordinário (RE) 1301250 será retomado nesta quinta-feira (25).
O caso teve origem quando o Google questionou ordem judicial que determinou acesso aos históricos de busca de pessoas não identificadas que pesquisaram sobre o assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, em 2018. A questão central é estabelecer se juízes podem decretar quebra de sigilo de dados sem identificar previamente os investigados, em situações de busca reversa por palavra-chave. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) havia mantido a quebra de dados de pessoas que fizeram pesquisas relacionadas ao caso, decisão agora questionada no STF.
Nunes Marques propõe regime de “estrita excepcionalidade”
O ministro Nunes Marques apresentou voto estabelecendo que a busca reversa digital é compatível com a Constituição Federal, mas apenas sob regime de “estrita excepcionalidade”. Sua proposta inclui nove condições que devem ser observadas para autorização judicial dessa modalidade investigativa, criando um protocolo específico para proteção de dados pessoais.
Entre as principais exigências propostas por Nunes Marques estão ordem judicial prévia e fundamentada com clara demonstração de necessidade e proporcionalidade, delimitação estrita dos termos de busca proibindo expressões genéricas, e recorte temporal e geográfico que reduza o universo de pessoas afetadas. O ministro também defendeu acesso progressivo aos dados, começando por informações pseudonimizadas e permitindo desanonimização apenas mediante justificativa adicional.
O voto inclui ainda exigências de subsidiariedade, com comprovação de que outros meios menos intrusivos se mostraram ineficazes, restrição a crimes hediondos ou equiparados, e destruição supervisionada dos dados de pessoas não envolvidas na investigação. Nunes Marques propôs também notificação posterior aos atingidos, sempre que possível, e controle jurisdicional reforçado, inclusive com possibilidade de contraditório sobre a pertinência dos termos empregados.
Gilmar Mendes equilibra segurança pública e direitos fundamentais
O ministro Gilmar Mendes, decano do Tribunal que havia pedido vista do processo, enfatizou a complexidade do caso que envolve tanto definição de parâmetros gerais sobre quebra de sigilo na internet quanto busca por justiça no assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes. O ministro destacou que o tema exige do STF “posição desafiadora”, buscando equilíbrio entre proteção de dados pessoais e segurança pública no contexto do constitucionalismo digital.
Gilmar Mendes fez reflexões sobre o papel do STF diante das críticas de “ativismo judicial”, observando que muitas decisões da Corte são rotuladas dessa forma embora estejam dentro das competências constitucionais previstas no artigo 102 da Constituição Federal.
Para Gilmar Mendes, cabe ao Supremo atuar como árbitro de conflitos políticos, legitimador de políticas públicas e principalmente como guardião dos direitos fundamentais. Ele destacou que a jurisprudência evoluiu de uma postura inicial de autocontenção, que se mostrou ineficaz quando o Legislativo não respondia às demandas sociais, para uma atuação mais proativa em defesa de direitos constitucionais.
Critérios específicos para crimes hediondos ganham força
Gilmar Mendes considerou temerário aplicar tese de repercussão geral para todas as hipóteses de acesso a dados digitalmente armazenados, alertando que novas medidas investigativas devem considerar impactos sobre direitos fundamentais. O ministro enfatizou especificamente que monitoramento por geolocalização pode gerar informações da vida privada ou intimidade, criando risco de vigilância estatal excessiva ou desmedida.
O ministro defendeu que quebra de sigilo coletiva de dados deve ser restrita a crimes hediondos, argumentando que no caso Marielle Franco havia elementos concretos indicando prática de “crime gravíssimo”. Segundo sua avaliação, não se tratou de “devassa ou atividade especulativa”, mas de investigação fundamentada com utilidade comprovada para desenvolvimento das apurações policiais.
Em sua proposta de tese, Gilmar Mendes estabeleceu quatro critérios principais: requisitos constitucionais para requisição de dados incluindo indícios fundados, motivação da utilidade e delimitação temporal; autorização para busca reversa apenas em crimes hediondos com pessoas determináveis; precisão nos indexadores de busca com fundamentação proporcional; e uso da medida apenas quando não houver alternativas menos invasivas disponíveis.
Posições divergentes
O julgamento evidencia divisão significativa na Corte sobre limites da investigação digital contemporânea. O ministro André Mendonça, que votou em abril acompanhando a relatora, Ministra Rosa Weber (já aposentada), entendeu que quebra de sigilo não pode alcançar grupo indefinido de pessoas, defendendo que a medida só pode ser autorizada com indícios específicos sobre indivíduos determinados, seguindo critérios rigorosos de proporcionalidade e suspeita fundada.
Essa posição diverge da linha adotada pelos ministros Alexandre de Moraes e Cristiano Zanin, que consideram a medida constitucional desde que atenda critérios claros e seja devidamente fundamentada judicialmente. Ambos destacaram que, em investigações complexas, uso de dados de buscas pode ser ferramenta legítima, respeitados os direitos fundamentais dos usuários de internet e plataformas digitais.
Ainda faltam votar a ministra Cármen Lúcia e os ministros Edson Fachin, Dias Toffoli, Luiz Fux e Luís Roberto Barroso, com retomada do julgamento prevista para esta quinta-feira (25). O ministro Flávio Dino não participa do julgamento por ter assumido a vaga de Rosa Weber, que já havia manifestado seu voto antes de deixar a Corte Suprema.