Luigi Roberto Rodrigues Berzoini
A Lei das Inelegibilidades, editada para regulamentar o art. 14, § 9º da Constituição e sancionada em 1990 pelo então Presidente Fernando Collor, foi alterada substancialmente ao final do segundo Governo Lula pela Lei Complementar 135/2010, mais conhecida como Lei da Ficha Limpa.
Desde o advento da Lei da Ficha Limpa, as inelegibilidades que foram inseridas na Lei Complementar 64/90 foram alvos de intenso debate. Notadamente, o art. 1°, Inciso I, alínea e da referida lei, que prevê inelegibilidades que têm marco inicial em condenações proferidas por órgão judicial colegiado e marco final até o transcurso do prazo de 8 anos após o cumprimento da pena, o que gerou questionamentos sobre sua constitucionalidade.
A Lei Complementar n° 135/2010 sofreu questionamentos no Supremo Tribunal Federal pela Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n° 4578, que foi julgada em 2012 conjuntamente com as Ações Declaratórias de Constitucionalidade n° 29 e 30, em um debate acerca de sua violação ao princípio da presunção de inocência.
Mais recentemente, o PDT questionou a (in)constitucionalidade da Lei da Ficha Limpa com a ADI n° 6.630, oportunidade na qual o partido argumentou a violação aos princípios constitucionais da proporcionalidade e da segurança jurídica, além de suscitar a violação ao art. 14, §9° da Constituição Federal que veda a inelegibilidade por tempo incerto ao perene e ao art. 15, que dispõe sobre a vedação da cassação de direitos políticos, além da violação ao art. 23, “2” do Pacto de São José da Costa Rica, que trata dos direitos políticos e suas restrições.
Tudo por gerar uma situação em que há um prazo incerto de inelegibilidade, à mercê da burocracia estatal. Veja-se, se uma inelegibilidade inicia após a condenação em órgão colegiado, ou seja, o tribunal de apelação, cabendo ainda Recurso Especial e Extraordinário, e se conclui somente 8 anos após o cumprimento da pena, há aqui uma inelegibilidade incerta que depende de quanto tempo durará a ação penal e toda extensão da pena.
Esse assunto restou vencido no STF que, mesmo diante de novos argumentos, se valeu do argumento da coisa julgada para não apreciar o mérito da ADI n° 6.630. Nesse particular, a posição da Suprema Corte não restou pacificada, uma vez que há limitações à coisa julgada quando falamos de controle de constitucionalidade, podendo decisão anterior ser reexaminada se for constatado que passou a permitir situações abusivas e inconstitucionais com o passar do tempo. Por exemplo, o voto do Ministro Luís Roberto Barroso nesse sentido, que ficou vencido.
Sendo assim, com uma suposta resolução do assunto no STF, restou que esse debate voltasse ao Parlamento, que evidentemente possui legitimidade para revisitar assunto de tamanha importância na vida institucional brasileira.
Julgada a ADI n° 6.630 pelo STF em 2022, o Projeto de Lei Complementar – PLP 192/2023, que propôs alterações substanciais na Lei da Ficha Limpa foi apresentado naquele período na Câmara e recentemente aprovado no Senado Federal, aguardando neste momento a sanção pelo Presidente Lula.
A intenção do projeto foi unificar prazos de inelegibilidade, estabelecendo um tempo máximo de 12 anos, quando estiver acumulado com eventuais condenações posteriores, além de prever que os efeitos decorrentes da regra aplicam-se aos casos em curso nas esferas judiciais e administrativas e estabelecer detração de inelegibilidade.
Veja-se que as inelegibilidades inseridas na Lei da Ficha Limpa, sem um prazo máximo definido e sem detração, criou situações que ao longo dos anos geraram um excesso de prazos de inelegibilidade, seja por morosidade processual ou sucessão de condenações criminais por órgão colegiado, algumas que são revistas ou até anuladas depois nos tribunais superiores (STJ e STF).
Nesse sentido, o fato é que a Lei da Ficha Limpa gerou nesse período verdadeiras sentenças de morte política, com inelegibilidades que na prática se dão por período incerto ou até perene, tratado-se na prática de cassação de direitos políticos, o que é expressamente vedado pelo art. 15 da Constituição Federal.
No mais, o art. 14, §9° da CF preconiza que “Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta.“
Um exemplo famoso desse problema é o do ex-governador do Distrito Federal, José Roberto Arruda, que está inelegível há 16 anos em razão de sucessivas condenações por improbidade. Veja-se, é o dobro do prazo legal, uma desproporcionalidade causada por uma relevante omissão legislativa.
Dito isso, o PLP 192/2023 vem pra resolver um grande problema da Lei da Ficha Limpa, que é o prazo de inelegibilidade incerto, o que viola os princípios da proporcionalidade e da segurança jurídica, além de violar expressamente o texto de dispositivos constitucionais e convencionais aqui citados.
Estabelecer um prazo máximo é resguardar o direito de agentes políticos condenados de terem seus direitos restabelecidos após um determinado prazo, garantindo-se o retorno dos direitos políticos após o cumprimento das penas, o que evita homicídios políticos por sucessivas condenações.
O novo texto, em fase de sanção, será positivo para a democracia caso venha a ser sancionado pelo Presidente Lula, uma vez que o prazo de inelegibilidade será minimamente racionalizado, trazendo um pouco de razoabilidade, além de preservar direitos e garantias.
Ademais, o PLP 192/2023 também insere no art. 1°, §6° da Lei das Inelegibilidades a previsão de que “Computa-se no prazo de 8 (oito) anos de inelegibilidade o tempo transcorrido entre a data da decisão proferida por órgão colegiado e a data do seu efetivo trânsito em julgado, regra que se aplica imediatamente aos processos em curso, bem como àqueles transitados em julgado“, o que é denominado detração de inelegibilidade.
Referido instituto é semelhante à detração penal, prevista no art. 42 do Código Penal, que dispõe que “Computam-se, na pena privativa de liberdade e na medida de segurança, o tempo de prisão provisória, no Brasil ou no estrangeiro, o de prisão administrativa e o de internação em qualquer dos estabelecimentos referidos no artigo anterior”
Mais uma solução correta e adequada para solucionar os problemas do excesso de prazo criados pela Lei da Ficha Limpa, uma vez que a detração fará o tempo de inelegibilidade ser computado durante a tramitação processual, o que afasta a questão da inelegibilidade incerta que foi citada acima, suscitada pelo PDT na ADI n° 6.630.
Nesse sentido, cabe dizer que, na regra atual, em vias de mudança, sem detração, o réu condenado criminalmente ou por improbidade administrativa, é punido com mais tempo de inelegibilidade por exercer seu direito de recorrer, em clara violação ao princípio da ampla defesa.
Veja-se, da condenação criminal em órgão colegiado, em sede de apelação, cabe Recurso Especial ao STJ para rever violações à Lei Federal e Recurso Extraordinário ao STF para rever violações constitucionais e a Lei da Ficha Limpa criou uma situação na qual compensa ao réu não interpor recursos, para não ampliar o tempo de inelegibilidade. Ora, interpor recursos é um direito do réu, limitado por uma inelegibilidade que se inicia após a condenação em segundo grau e se conclui somente 8 anos após o cumprimento da pena.
Por essas razões, entendo aqui que ambas as previsões, tanto do tempo máximo de 12 anos de inelegibilidade após sucessivas condenações, bem como a de detração de inelegibilidade, inseridas pelo PLP 192/2023, são positivas e farão bem para o Direito Eleitoral e para a democracia brasileira, resguardando direitos políticos e trazendo mais segurança jurídica ao processo eleitoral.
Entendo ainda, apesar do STF não ter entendido dessa forma, que permitir a inelegibilidade após condenação em 2ª Instância é inconstitucional por violação ao princípio da presunção de inocência, razão pela qual o marco inicial da inelegibilidade deveria ser mesmo o do trânsito em julgado da sentença condenatória, mas o Congresso aparentemente não tem interesse em fazer essa mudança.
Por essas razões, conclui-se que, com a sanção do PLP 192/2023, a lei ainda estará parcialmente equivocada, mas o novo texto é muito positivo, uma vez que racionaliza minimamente o tempo de inelegibilidade, acabando com os excessos de prazo, não se tratando de flexibilização, como alguns têm argumentado, e sim de respeito às garantias constitucionais.