Por Hylda Cavalcanti
Todo processo de dissolução de sociedade deve focar estritamente na relação societária e na apuração de haveres. Tentativas de utilizar este rito especial para cobrar dívidas pessoais de contratos de compra e venda de cotas são tecnicamente inviáveis e devem ser extintas.
Com esse entendimento, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), por meio de decisão monocrática do ministro Marco Aurélio Buzzi, manteve decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) pela extinção de uma reconvenção societária envolvendo a empresa Comtelsat S/A, de infraestrutura tecnológica, e outros sócios.
Técnica processual
O magistrado destacou, ao avaliar o mérito da questão, que além desse entendimento existe precedente no STJ reafirmando a importância da técnica processual na condução de litígios complexos, delimitando as fronteiras de cada rito previsto na legislação processual.
O processo teve como origem uma ação de dissolução parcial de sociedade ajuizada pela empresa Comtelsat S/A, com o objetivo de exercer seu direito potestativo de retirada, motivado pela ruptura da affectio societatis (palavra em latim que significa afeição social).
O termo significa, no contexto do Direito Societário, a vontade comum e recíproca dos sócios de se unirem e cooperarem para a consecução de um objetivo social e de aceitarem os riscos inerentes ao negócio.
Pedido de reconvenção
Em sede de contestação, a parte adversa, formada pelo sócio Nilson Tocuo Fujisawa e seus familiares, apresentou um pedido de reconvenção da sociedade, buscando a condenação da Comtelsat ao pagamento de suposto saldo remanescente de US$ 1 milhão. O pedido foi negado pelo TJSP.
Insatisfeita, a família Fujisawa interpôs recurso junto ao STJ, buscando a reforma. Conforme a argumentação dos Fujisawa, o valor era proveniente de um contrato de compra e venda de quotas firmado em 2012.
Os advogados dos sócios que pediram a reconvenção alegaram que era preciso condicionar a apuração de haveres e a formalização da retirada ao adimplemento prévio dessas obrigações civis, caso contrário existiria “abuso de direito” por parte da sócia retirante, a Comtelsat. Acentuaram, ainda, que a empresa pleiteava se retirar da sociedade “sem antes quitar obrigações societárias que, supostamente, estariam em aberto”.
Incompatibilidade entre reconvenção e rito da ação
A defesa da Comtelsat afirmou, na tese vencedora no TJSP, agora mantida pelo STJ, que a incompatibilidade entre a pretensão reconvencional e o rito da ação principal está alicerçada em três pilares. O primeiro deles é o artigo 602, do Código de Processo Civil (CPC), que restringiu a legitimidade “para reconvir, em ações de dissolução, exclusivamente à sociedade, e tão somente para pleitear indenização compensável com os haveres”.
Sendo assim, segundo esse artigo, pessoas físicas e ex-sócios, carecem de legitimidade para postular, em nome próprio, crédito pessoal em face da sócia retirante.
O segundo pilar, conforme explicou o advogado Lucas da Silva Almeida, que atuou no processo como defensor da ComTelsat S/A, é a inexistência de liame jurídico entre a causa de pedir da ação principal (direito societário de retirada) e a da reconvenção (inadimplemento contratual civil). “O TJSP e o STJ corroboraram que a discussão sobre o preço das quotas e seu pagamento “refoge ao âmbito da dissolução parcial”, afirmou ele.
Sem cumulação de pedidos distintos
Por fim, a defesa da empresa lembrou da impossibilidade de cumulação de pedidos que seguem ritos distintos — o especial da dissolução (focado na cisão parcial de sociedade e apuração de valor) e o comum da cobrança. Também afirmou que existia incompetência absoluta da Vara Empresarial Especializada para processar matéria de cunho cível obrigacional.
A decisão monocrática do ministro Buzzi foi proferida no âmbito do Recurso Especial (REsp) Nº 2.208.957/SP. O processo completo não foi disponibilizado ainda pelo Tribunal. Para os advogados da Comtelsat S/A, Felipe Bresciani de Abreu Sampaio e Lucas da Silva Almeida, “o desfecho representou uma vitória expressiva”. Acesse aqui para ler a decisão do ministro Buzzi.
“Conseguimos demonstrar com êxito a impossibilidade jurídica de cumular pretensões de natureza puramente pessoal e obrigacional no âmbito de uma ação de dissolução parcial de sociedade, desmascarando a tentativa da parte adversa de tratar a cobrança do preço de cotas e supostas indenizações por atos de gestão como se fossem itens de apuração de haveres”, explicaram os dois advogados, que integram a banca do escritório Abreu Sampaio.



