Quando o mar avança, quem protege a areia?

Há 2 horas
Atualizado quinta-feira, 6 de novembro de 2025

Por Jeffis Carvalho

O que Atafona perdeu não volta mais. Não são apenas casas engolidas pelo Atlântico — são memórias dissolvidas em sal, ruas que viraram fantasmas submersos, vidas inteiras reescritas pela teimosia das ondas. Em São João da Barra, no norte do Rio de Janeiro, a praia de Atafona virou um monumento involuntário ao que acontece quando o mar decide cobrar a conta do aquecimento global. Dezenas de metros de costa desapareceram. Dezenas de casas, também. O que sobrou? Uma lição amarga: a natureza não negocia prazos.

A 2.500 quilômetros dali, em Ponta Negra, Rio Grande do Norte, a história se repete com sotaque diferente. Vinte anos foram suficientes para a faixa de areia encolher como pele ao sol. O que era largo virou estreito. O que era cheio virou vazio. Obras emergenciais tentaram repor o que o oceano levou — um Band-Aid em hemorragia.

É assim que a crise climática se manifesta no Brasil: não como abstração científica em relatórios do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climática), mas como concreto rachado, alicerce exposto, famílias despejadas pela própria geografia. Até 2050, dizem os especialistas, o nível do mar pode subir até 29 centímetros. Parece pouco? Pergunte aos moradores de Atafona se 29 centímetros são nada.

A procuradora que virou guardiã do litoral

A  procuradora regional da República Gisele Porto não tem cara de super-heroína. Ela fala com a precisão de quem domina jurisprudência mas, principalmente, como quem assumiu a tarefa de coordenar um projeto especial no Ministério Público Federal.  

Em 2015, quando poucos prestavam atenção ao gerenciamento costeiro, Gisele percebeu o óbvio que ninguém queria ver: havia informação insuficiente, participação tímida do Ministério Público Federal e, principalmente, um vácuo perigoso entre a lei e a prática. Municípios não sabiam como gerir suas praias. A União tinha medo de perder controle. E as comunidades tradicionais — pescadores, marisqueiros, quilombolas — ficavam no limbo, assistindo seu território virar palco de disputa silenciosa.

Foi assim que nasceu o MPF Gerco, o projeto que transformou o MPF em ponte entre burocracia e areia. A ideia era simples, quase óbvia: criar um modelo de gestão que permitisse aos municípios administrarem suas praias sem privatizá-las, mantendo o acesso livre e a preservação intacta. O instrumento jurídico se chamava Termo de Adesão à Gestão de Praias, o TAGP — sigla burocrática para algo revolucionário: o direito de cuidar do que é de todos.

“Percebemos que seria essencial criar e difundir as cláusulas do TAGP para que a União pudesse transferir a gestão aos municípios com segurança jurídica”, explica Gisele, com a calma de quem sabe que mudanças estruturais não acontecem em semanas.

Demorou uma década. Mas funcionou.

Mil pessoas, treze oficinas. Um recado

Durante 2025, o projeto MPF Gerco percorreu o litoral brasileiro como pregador de nova religião cívica. Foram 13 oficinas, mais de mil participantes — gestores municipais, técnicos ambientais, representantes da Marinha, acadêmicos, gente do Ministério do Turismo e, principalmente, as comunidades que vivem da maré.

Não eram reuniões protocolares. Eram laboratórios de democracia aplicada, onde conflitos eram mediados antes de virarem processos; em que soluções naturais para erosão costeira competiam com engenharia pesada; no qual o conhecimento tradicional dos pescadores dialogava de igual para igual com relatórios técnicos.

No MPF, o projeto tem apoio das Câmaras de Meio Ambiente e Patrimônio Cultural (4CCR) e de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais (6CCR), além das Procuradorias da República nos municípios costeiros, para a realização das oficinas. A Escola Superior do Ministério Público da União (ESMPU) também apoia o projeto, oferecendo cursos de capacitação em gestão de praias.

Luiza Frischeisen, subprocuradora-geral da República e coordenadora da Câmara de Meio Ambiente do MPF, resume com clareza cirúrgica: “A zona litorânea é um dos temas mais importantes para nós. A preservação está ligada diretamente às mudanças climáticas, ao aquecimento dos oceanos. Algumas partes da nossa costa são mais suscetíveis à erosão, a movimentos cada vez mais violentos do mar.”

E há os mangues — esses esquecidos heróis climáticos, capazes de absorver gás carbônico com eficiência que nenhuma tecnologia consegue replicar. Destruí-los é crime duplo: ambiental e contra o futuro.

As comunidades que a lei esqueceu

Eliana Torelly, subprocuradora-geral da República e coordenadora da Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do MPF , conhece bem os invisíveis do litoral. São pescadores que acordam antes do sol, marisqueiros que conhecem a tábua das marés melhor que qualquer app, quilombolas que habitam a costa há gerações, indígenas para quem o mar é ancestralidade líquida.

“Com certeza, as comunidades têm muito a ganhar sendo incluídas em todo esse processo”, afirma Eliana. Não é retórica. É constatação: quando a gestão costeira ignora quem vive da costa, o resultado é duplo desastre — ambiental e humano.

O projeto MPF Gerco entendeu isso. Por isso, cada oficina reservava espaço para escuta, para diálogo, para inclusão real — não aquela de foto para relatório.

O Brasil no Olho do Furacão (Climático)

Novembro de 2025. A partir de hoje, com abertura na próxima segunda-feira, dia 10,  Belém do Pará recebe a COP 30, a conferência da ONU sobre mudanças climáticas. O Brasil estará no centro das negociações globais, carregando no currículo tanto virtudes (a maior floresta tropical do planeta) quanto pecados (desmatamento, queimadas, licenças ambientais duvidosas).

O MPF Gerco chegará à COP 30 com um portfólio que não cabe em PowerPoint: uma década de gestão costeira responsável, milhares de pessoas capacitadas, conflitos mediados, praias protegidas. É evidência concreta de que é possível equilibrar desenvolvimento, preservação e justiça socioambiental — aquele conceito bonito que costuma morrer na praia da implementação.

“No contexto da COP 30, o projeto tem importância máxima”, diz Gisele Porto. “A proteção das praias evita erosão costeira, inundações, aumento do nível do mar. É medida indispensável para mitigação e adaptação das mudanças climáticas.”

Traduzindo: quando protegemos as praias, protegemos a nós mesmos.

O legado que fica na areia

Dez anos depois de começar, o MPF Gerco não é mais apenas um projeto. Virou política pública, metodologia replicável, prova de que a burocracia pode, sim, servir ao bem comum. O legado transcende números: é a consciência de que gerir praias significa assumir direitos e obrigações, de que o planejamento precisa ser coletivo, de que as comunidades tradicionais não são obstáculo — são solução.

“Nosso foco é garantir o direito ao meio ambiente costeiro e marinho ecologicamente equilibrado, a participação da sociedade e das comunidades tradicionais no planejamento, promovendo a sustentabilidade, a justiça socioambiental, e a mitigação e adaptação das mudanças climáticas”, finaliza Gisele Porto.

Enquanto isso, em Atafona, o mar continua avançando. Mas agora, ao menos, há quem esteja defendendo a areia — não apenas com leis e termos de adesão, mas com a certeza de que proteger o litoral é proteger o Brasil inteiro.

Porque quando o mar avança, não há muro que possa segurá-lo. Só planejamento, gestão responsável e respeito por quem sempre soube que a maré, mais cedo ou mais tarde, cobra o que é dela.

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