Por Carolina Villela
O Supremo Tribunal Federal (STF) iniciou nesta quarta-feira (10) o julgamento de quatro ações que discutem a constitucionalidade da Lei do Marco Temporal (Lei 14.701/2023), que estabelece critérios para o reconhecimento de territórios ancestrais dos povos originários e demarcação de terras indígenas. O tribunal analisa conjuntamente a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 87 e as Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 7582, 7583 e 7586, todas sob relatoria do ministro Gilmar Mendes.
Segundo a tese do Marco Temporal, os povos indígenas teriam direito de ocupar apenas as terras que ocupavam ou já disputavam na data de promulgação da Constituição de 1988, em 5 de outubro. Em dezembro de 2023, o Congresso Nacional editou a lei restabelecendo a tese, que havia sido derrubada pelo Tribunal em setembro daquele ano. A sessão desta tarde foi acompanhada por diversas comunidades indígenas presentes no plenário. Nesta primeira etapa, o relator fez um resumo dos fatos e as partes interessadas estão realizando as sustentações orais. A votação será realizada em outra data.
Defesa da lei alega segurança jurídica
Rudy Maia, advogado do partido Progressista, defendeu o diálogo para a solução dos conflitos, destacando que o processo de demarcação de terras indígenas não é igual em várias regiões do país. Ressaltou que a pacificação do tema depende de segurança jurídica e da tese do Marco Temporal. O advogado da Câmara dos Deputados, Jules Michelet, afirmou que o Poder Legislativo, ao incluir o Marco Temporal na lei 14.701, seguiu a jurisprudência do STF, transformando-se no estatuto das terras indígenas com garantias e responsabilidades do Estado.
“É falso afirmar que o Marco Temporal é um óbice à demarcação de terras indígenas”, argumentou Michelet. Segundo ele, o que trava a resolução não é uma tese abstrata, mas sim conflitos concretos. O advogado sustentou que a lei buscou dar uma base de segurança para questões pragmáticas e garantir unidade constitucional. A Câmara pediu o reconhecimento da constitucionalidade da norma.
Daniele Pereira, representante do Senado, também defendeu a validade da lei. Na sua avaliação, não se questiona o dever do Estado de reconhecer o direito dos povos originários, mas como e em que extensão o Estado deve garantir políticas públicas à comunidade indígena, especialmente quando afeta interesses de não indígenas de boa-fé. Ela argumentou ser necessário contemplar os direitos e deveres de todas as pessoas envolvidas: indígenas e produtores rurais, não apenas um dos lados.
Indígenas apontam violações e riscos ambientais
Ricardo Terena, que representa a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, afirmou que a promessa de paz social da lei, quando ela estava em vigor, jamais foi cumprida. Ele argumentou sobre a relevância internacional do julgamento e que as consequências da decisão do STF serão sentidas pelas próximas gerações. Para o defensor, a legislação apresenta um grave risco para a efetividade da demarcação, ameaçando inviabilizar os processos administrativos no país.
Maria de Oliveira Carneiro, ao defender a inconstitucionalidade da lei, ressaltou que ela abre brechas para revisões territoriais e restrições indevidas, funcionando “como combustível para conflitos em áreas já vulnerabilizadas”. Além disso, a advogada sustentou que as terras indígenas são os instrumentos mais eficientes na proteção ambiental. “Ou o Brasil protege terras indígenas, ou perde sua credibilidade”, afirmou.
Dinamam Tuxá, advogado do Psol e indígena, chegou a se emocionar no tribunal. Ele afirmou que a lei do Marco Temporal provoca uma série de violações e pediu que seja invalidada, solicitando também que o Estado brasileiro finalize as demarcações de áreas. Paulo Machado Guimarães, representante do PCdoB e Partido Verde, criticou a proposta de emenda constitucional que impõe limite à reivindicação de terras pelos povos indígenas, aprovada pelo Senado na terça-feira. A PEC insere na Constituição a tese do marco temporal e ainda será analisada pela Câmara dos Deputados.
Processo de conciliação marcou preparação do julgamento
O caminho até este julgamento foi marcado por um esforço inédito de diálogo entre as partes conflitantes. O STF conseguiu costurar um acordo para uma proposta de alteração da Lei do Marco Temporal, com a aprovação de uma minuta conjunta contendo diversos pontos consensuais. O documento é resultado da análise de um anteprojeto de lei elaborado pelo ministro Gilmar Mendes, que conduziu as negociações ao longo de quase um ano.
Durante as audiências de conciliação, foram debatidos temas fundamentais como a jurisprudência do STF e da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre o marco temporal, além dos direitos indígenas discutidos na Assembleia Constituinte de 1987 e previstos na Constituição de 1988. As sessões temáticas contaram com a participação de lideranças indígenas, antropólogos e cientistas sociais, garantindo uma abordagem multidisciplinar ao problema. Em abril de 2024, o relator determinou a suspensão de todos os processos judiciais que discutam a constitucionalidade da Lei 14.701/2023, até que o STF se manifeste definitivamente sobre a matéria.



