Por Carolina Villela
O Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu nesta quinta-feira (27) o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 973, que discute o reconhecimento da violação sistemática dos direitos fundamentais da população negra no Brasil, após divergências entre os ministros sobre a caracterização do “estado de coisas inconstitucional”. A Corte ficou dividida quanto ao reconhecimento dessa situação, embora haja consenso sobre a necessidade de medidas concretas de combate ao racismo. O julgamento será retomado em nova data, aguardando os votos dos ministros Edson Fachin, presidente do STF, e Gilmar Mendes.
A ação foi apresentada por sete partidos políticos – PT, PSOL, PSB, PCdoB, Rede Sustentabilidade, PDT e PV – e solicita medidas de reparação e a implementação de políticas públicas específicas para a população negra. O relator, ministro Luiz Fux, julgou a ação parcialmente procedente, declarando o “estado de coisas inconstitucional” na superação das desigualdades raciais históricas e determinando a revisão do Plano de Ação Interministerial para a Promoção da Igualdade Racial (Apir) ou a elaboração de um novo plano nacional de combate ao racismo institucional.
Divergências Técnicas no Plenário
O ministro Cristiano Zanin abriu divergência por entender que, apesar de haver violações aos direitos fundamentais, não há “estado de coisas inconstitucional”. No entanto, ele aderiu à proposta de Fux quanto às medidas práticas de combate ao racismo. O ministro André Mendonça adotou entendimento semelhante ao de Zanin, mas considerou que é preciso promover a igualdade racial material e não apenas formal, sem reconhecer formalmente o racismo institucional, embora determinando a adoção de providências concretas.
Para o ministro Nunes Marques, é inegável a violação de direitos fundamentais de forma antiga e sistêmica. Ele acompanhou o relator nos principais pontos do voto, mas divergiu em relação ao reconhecimento de “estado de coisas inconstitucional”.
O ministro Alexandre de Moraes defendeu que o racismo deve ser combatido e extirpado, ressaltando que é uma chaga na sociedade que permanece. No entanto, para o magistrado, trata-se de questões econômica, cultural e social, muito mais do que uma questão jurídica. Moraes também votou para afastar o “estado inconstitucional de coisas”, mas defendeu que sejam atendidos todos os outros pedidos da ação.
Votos favoráveis ao reconhecimento
O ministro Flávio Dino foi o primeiro a acompanhar integralmente o voto do relator, reconhecendo o “estado de coisas inconstitucional” e apoiando todas as medidas propostas por Fux. A posição de Dino reforçou o entendimento de que a situação da população negra no Brasil caracteriza uma falha estrutural que exige resposta coordenada dos três poderes.
Ao citar o rapper Emicida, a ministra Cármen Lúcia afirmou que “não espera viver num país que para branco a Constituição seja plena e para o negro seja quase. Eu quero uma Constituição que seja plena igualmente para todas as pessoas”. Para ela, há sim um “estado de coisas inconstitucional” porque todas as medidas tomadas até aqui não revelam superação de um racismo histórico, o que chamou de tragédia no Brasil. A ministra acompanhou o relator e ressaltou a insuficiência de ações para combater o racismo no país.
O ministro Dias Toffoli também acompanhou o voto de Zanin, reconhecendo que há graves violações a preceitos fundamentais e que é necessário adotar medidas efetivas contra o racismo, embora tenha divergido quanto à caracterização formal do estado de coisas inconstitucional.
Placar indefinido e expectativa
O julgamento foi suspenso com o placar indefinido, faltando os votos dos ministros Edson Fachin, presidente do STF, e Gilmar Mendes. Dependendo do teor das manifestações dos dois magistrados, o placar pode ficar empatado ou pender para um dos lados. Fachin já adiantou que tem um voto longo e vai explicitar os motivos pelos quais se caracteriza “estado de coisas inconstitucional”, sinalizando posição favorável ao entendimento do relator.
A expectativa é que o voto de Fachin seja detalhado e fundamentado em precedentes nacionais e internacionais sobre litígios estruturais e violações sistemáticas de direitos humanos. O presidente do STF tem histórico de manifestações favoráveis a políticas de promoção da igualdade racial e reconhecimento do racismo estrutural.
O voto do ministro Gilmar Mendes, por sua vez, é aguardado com grande expectativa, pois pode ser decisivo para definir o resultado final do julgamento. Mendes costuma adotar posições pragmáticas e pode buscar um caminho intermediário que concilie os diferentes entendimentos manifestados até o momento.
Reconhecimento da violação de direitos fundamentais
Os partidos que apresentaram a ADPF argumentam que existe uma violação massiva de direitos fundamentais caracterizando um “estado de coisas inconstitucional”, fundamentado no racismo estrutural e institucional. A ação aponta para a necessidade de políticas de reparação pelas ações e omissões reiteradas do Estado brasileiro ao longo da história.
O ministro Fux reconheceu a ineficiência do Estado brasileiro na garantia de direitos fundamentais da população mais humilde, majoritariamente negra do país. As legendas destacam a violação de direitos essenciais como vida, saúde, segurança e alimentação digna. Um dos pontos críticos apresentados é o crescente aumento da letalidade de pessoas negras em decorrência de violência policial e institucional, fenômeno que demanda resposta urgente do poder público.
Fux iniciou seu voto afirmando que prefere descrever o tema como “racismo histórico”. Segundo o ministro, apesar de alguns avanços e políticas, o racismo estrutural prevalece no Brasil devido às constantes violações de preceitos fundamentais. O magistrado destacou que o STF tem adotado jurisprudência sobre o tema, reconhecendo o estado de coisas inconstitucional em ações envolvendo pessoas em situação de rua e a população carcerária.
Proposta de plano nacional com onze diretrizes
Luiz Fux propôs a adoção de um plano nacional de enfrentamento ao racismo que estabelece 11 pontos estruturantes. Entre as principais diretrizes estão providências concretas para o combate ao racismo institucional, sobretudo em áreas relacionadas ao acesso à saúde, segurança alimentar, segurança pública e proteção da vida.
O plano inclui providências reparatórias em virtude de graves violações de direitos humanos em função da raça e cor, como a construção da memória e valorização do papel das populações discriminadas na formação étnico-cultural do país, no sistema educativo formal e no atendimento humanizado.
Outra diretriz prevê a revisão dos procedimentos de acesso via cotas às oportunidades de educação e emprego em função de raça-cor, com o objetivo de evitar a baixa efetividade em função de metodologias pouco efetivas ou que criam obstáculos desnecessários ao acesso. A proposta reconhece que apenas criar cotas não é suficiente se o acesso continua dificultado na prática.
Monitoramento e protocolo de atendimento
O plano também determina a instituição de instrumentos de monitoramento e avaliação de cada elemento da política nacional de combate ao racismo que vier a ser formulada a partir da revisão proposta, com a definição de metas e prioridades mensuráveis. A criação de protocolo de atendimento de pessoas negras pelos órgãos do Poder Judiciário, pelo Ministério Público, pelas Defensorias Públicas e autoridades policiais para melhor acolhimento institucional e enfrentamento de disparidades raciais também consta entre as medidas.
“Dizer que não há racismo estrutural é negar a realidade”, afirmou o ministro Fux durante seu voto. Segundo o relator, o STF está diante de um sensível processo estrutural, e a luta pela efetividade da Constituição é obrigação de todos os poderes, não apenas do Supremo Tribunal Federal. O ministro defendeu que deve haver uma política avançada e constante para que ocorra efetivamente a promoção da destruição do racismo histórico, ressaltando que mesmo com as cotas raciais, os negros não ocupam vagas estratégicas em órgãos públicos e em universidades.



