Da redação
A ex-deputada federal Carla Zambelli (PL-SP) renunciou ao mandato parlamentar no último dia 14, dois dias após o STF confirmar sua cassação e quatro dias depois de a Câmara dos Deputados ter votado pela manutenção do cargo, mesmo após condenações do STF. A renúncia encerra um capítulo controverso marcado por duas condenações criminais, fuga para a Europa e um embate institucional entre Legislativo e Judiciário sobre os limites de atuação de cada poder.
Duas condenações pelo Supremo
Zambelli acumula duas condenações criminais proferidas pelo Supremo Tribunal Federal. A primeira, anunciada em agosto de 2025, foi por porte ilegal de arma de fogo e constrangimento ilegal. Por maioria de votos, o STF a condenou a 5 anos e 3 meses de prisão em regime semiaberto, além de multa de 400 salários-mínimos.
A sentença decorreu de um episódio ocorrido na véspera do segundo turno das eleições de 2022. Zambelli perseguiu o jornalista Luan Araújo empunhando uma arma de fogo no bairro Jardins, em São Paulo. O relator, ministro Gilmar Mendes, destacou que a Lei 10.826/2003 proíbe o porte ostensivo de arma em espaços públicos.
O ministro também afastou a alegação de legítima defesa apresentada pela parlamentar. Segundo ele, ao apontar a arma contra um jornalista desarmado, a ex-deputada reduziu a capacidade de resistência da vítima e causou fundado temor quanto à sua integridade física. A decisão determinou ainda a perda do mandato parlamentar.
A segunda condenação foi ainda mais grave e ocorreu em maio de 2025. A Primeira Turma do STF condenou Zambelli a 10 anos de prisão em regime inicial fechado. A sentença se deu por unanimidade pelos crimes de falsidade ideológica e invasão de dispositivo informático qualificada.
Invasão ao sistema do CNJ
De acordo com a denúncia da Procuradoria-Geral da República, Zambelli teria comandado o hacker Walter Delgatti Neto na invasão de sistemas do Conselho Nacional de Justiça. Entre agosto de 2022 e janeiro de 2023, Delgatti adulterou dados de documentos como certidões, mandados de prisão e alvarás de soltura.
O caso envolveu a inserção de um falso mandado de prisão contra o ministro Alexandre de Moraes. Segundo a PGR, a intenção era colocar em dúvida a legitimidade da Justiça e fomentar manifestações contra as instituições republicanas. O objetivo seria expandir narrativas fraudulentas contra o processo eleitoral brasileiro.
Delgatti confessou o crime e afirmou ter sido contratado pela parlamentar. Em agosto de 2022, a própria Zambelli divulgou em suas redes sociais um encontro com o hacker. Na publicação, afirmou que ele havia sido responsável por hackear 200 autoridades, incluindo ministros do Executivo e do Judiciário.
Fuga para a Itália
Em junho de 2025, a Primeira Turma do STF rejeitou os embargos de declaração apresentados por Zambelli e Delgatti. A decisão decretou o trânsito em julgado da condenação, ou seja, o fim da possibilidade de recursos. Com isso, o ministro Alexandre de Moraes determinou a prisão definitiva da deputada.
No dia 3 de junho, Zambelli anunciou publicamente que havia deixado o Brasil. Em entrevistas, afirmou que pretendia se refugiar na Europa e que, por ter cidadania italiana, seria “intocável na Itália” e não poderia ser extraditada. As declarações demonstraram intenção de se eximir da aplicação da lei brasileira.
O ministro Alexandre de Moraes determinou a instauração de novo inquérito para apurar possíveis crimes de coação no curso do processo e obstrução de investigação penal. Na decisão, destacou que as manifestações públicas de Zambelli indicavam risco de reiteração criminosa e tentativa de descredibilizar as instituições democráticas do país.
A parlamentar passou por Argentina e Estados Unidos antes de ser localizada pela Interpol. Dias depois de ser considerada fugitiva, Zambelli foi presa nos arredores de Roma. O governo brasileiro solicitou formalmente sua extradição, pedido que ainda aguarda análise pela justiça italiana.
Embate entre Câmara e STF
Em 10 de dezembro, o plenário da Câmara dos Deputados não alcançou o quaorum necessário e decidiu rejeitar a cassação do mandato de Carla Zambelli. Foram 227 votos a favor da manutenção do mandato, 170 contrários e 10 abstenções. Seriam necessários 257 votos para confirmar a perda do cargo determinada pelo STF.
A votação contrariou a recomendação da Comissão de Constituição e Justiça, que havia aprovado horas antes a cassação da parlamentar. Durante a sessão, aliados argumentaram que a medida seria excessiva e sinalizaria submissão do Legislativo ao Judiciário. Deputados destacaram que a Constituição atribui ao Congresso a deliberação sobre perda de mandato.
O presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), havia inicialmente sinalizado que homologaria automaticamente a decisão do Supremo. No entanto, recuou após pressão do Partido Liberal e incluiu o caso na pauta de forma repentina. A reviravolta gerou críticas da oposição.
Dois dias após a votação na Câmara, a Primeira Turma do STF confirmou por unanimidade a decisão do ministro Alexandre de Moraes. O julgamento ocorreu em plenário virtual, com votos dos ministros Cristiano Zanin, Flávio Dino e Cármen Lúcia. A Corte reafirmou que a perda do mandato deveria ocorrer de forma automática.
Renúncia estratégica
No domingo seguinte, 14 de dezembro, Zambelli entregou à Câmara dos Deputados uma carta de renúncia ao mandato parlamentar. A informação foi divulgada pela assessoria da presidência da Casa. Com a renúncia, assume o cargo o suplente do Partido Liberal de São Paulo que recebeu mais votos, Adilson Barroso.
Em sua carta, Zambelli afirmou ter sido perseguida e que sua história pública não foi forjada. “Afirmo: a verdade foi dita, a história foi escrita e a minha consciência permanece livre”, concluiu a ex-deputada.
O pedido de renúncia não afeta as condenações das quais Zambelli foi sentenciada. As sentenças foram concluídas e já preveem a suspensão dos direitos políticos. Assim, a ex-deputada fica sem possibilidade de votar ou de se candidatar a cargo eletivo enquanto durar a pena.
Críticas à estratégia
O líder do PT na Câmara dos Deputados, Lindbergh Farias (PT-RJ), lamentou que a Casa tenha “perdido sua última oportunidade digna de se alinhar à Constituição”. Segundo ele, a renúncia não produz qualquer efeito jurídico e não apaga os fatos, os crimes e nem os efeitos da condenação.
“Ou a Mesa cumpre imediatamente a Constituição e as decisões do STF, ou continuará incidindo em omissão inconstitucional, passível de caracterizar, em tese, crime de responsabilidade e prevaricação”, afirmou Farias. A crítica evidencia a tensão institucional gerada pelo caso entre os poderes Legislativo e Judiciário.
Zambelli foi a mulher mais votada do país para a Câmara em 2022, com mais de 946 mil votos. O caso gerou amplo debate sobre os limites da imunidade parlamentar, a relação entre os poderes e as consequências de condenações criminais para mandatos eletivos. A extradição da ex-deputada ainda aguarda decisão da justiça italiana.


