Ministro faz análise contundente sobre impacto das plataformas digitais na sociedade durante sessão que discute responsabilização das big techs
O ministro Flávio Dino protagonizou um dos momentos mais marcantes do julgamento sobre a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet no Supremo Tribunal Federal (STF) nesta quarta-feira (11). Em uma fala contundente e reflexiva, o magistrado teceu severas críticas às redes sociais e ao que classificou como “tecnodeterminismo”, defendendo uma postura mais rigorosa em relação às plataformas digitais.
Durante sua participação na sessão plenária, Dino não poupou palavras ao avaliar o impacto das redes sociais na humanidade. Para o ministro, essas plataformas falharam em cumprir qualquer papel positivo na evolução social. “As redes sociais não aproximaram a humanidade daquilo que ela produziu de melhor”, afirmou categoricamente, acrescentando que também não contribuíram para aproximar as pessoas da ciência, filosofia ou religião.
A crítica do ministro se estendeu ao conceito de “tecnodeterminismo”, que ele considera uma ameaça à própria essência humana e religiosa. Segundo Dino, trata-se de “uma encruzilhada vital na trajetória do ser humano na Terra”, alertando para os perigos de uma sociedade que se deixa guiar exclusivamente pela tecnologia. O magistrado observou uma contradição particular no comportamento de alguns segmentos religiosos que, segundo ele, defendem o tecnodeterminismo sem perceber que este “quer ser Deus, onipotente e onisciente”, criando uma tensão fundamental com a dimensão espiritual da vida.
O posicionamento de Dino representa uma visão mais radical entre os ministros do STF que já se manifestaram no processo. Enquanto colegas como Dias Toffoli, Luiz Fux e Luís Roberto Barroso votaram pela responsabilização parcial das plataformas em casos específicos, Dino sinalizou que adotaria uma postura ainda mais rigorosa. “Se dependesse de mim, o resultado desse julgamento seria outro, bastante diferente. E seria muito mais rigoroso”, declarou, deixando claro que sua avaliação sobre as redes sociais é profundamente negativa.
O ministro também direcionou críticas contundentes ao que considera uma “minimização da mentira” nas plataformas digitais. Para ele, existe uma tendência perigosa de tratar a desinformação como algo “acessório, menor ou até anedótico”, quando na verdade pode ser “profundamente nociva”. Dino fez questão de distinguir entre opinião legítima e mentira factual, utilizando exemplos práticos para ilustrar sua posição.
“É falso que tudo é uma questão de opinião”, enfatizou o magistrado, exemplificando que questionar o funcionamento da Justiça Eleitoral é legítimo, mas afirmar que existe uma “sala escura no TSE onde magistrados manipulam o código-fonte” constitui mentira tipificada, não opinião. Da mesma forma, ele defendeu que diferentes crenças religiosas – incluindo ateísmo e agnosticismo – são opiniões legítimas, mas que nenhum grupo pode usar qualquer meio, “inclusive o virtual”, para tentar exterminar quem pensa diferente.
O contexto do julgamento é de extrema relevância para o futuro da internet no Brasil. O artigo 19 do Marco Civil da Internet exige ordem judicial prévia e específica de exclusão de conteúdo para a responsabilização civil de provedores de internet, websites e gestores de redes sociais por danos decorrentes de atos ilícitos praticados por terceiros. Já votaram os ministros Dias Toffoli e Luiz Fux, relatores dos recursos, Luís Roberto Barroso, presidente do STF, e André Mendonça, restando os votos de Alexandre de Moraes, Cármen Lúcia, Cristiano Zanin, Edson Fachin, Gilmar Mendes e Nunes Marques.
A posição de Dino contrasta especialmente com a do ministro André Mendonça, que defendeu a constitucionalidade do artigo 19 e alertou para os riscos da censura prévia. Durante a sessão de quinta-feira passada, quando o equipamento de Mendonça travou durante a leitura de seu voto, Dino aproveitou para brincar: “É um colapso, não é? Por isso que tem de ter responsabilização”, demonstrando de forma bem-humorada sua posição sobre a necessidade de maior controle das plataformas.
O julgamento ocorre em um momento crucial para a regulamentação das big techs no Brasil. A expectativa é que a decisão do STF pressione o Congresso a retomar o debate sobre a regulação das redes sociais, especialmente após o arquivamento do “PL das Fake News” por falta de consenso. Analistas avaliam que a ação ostensiva das big techs contra a regulação pode se voltar contra elas, dependendo do rigor da decisão do STF.
A fala de Dino também revela uma preocupação filosófica mais ampla sobre os rumos da civilização. Para o ministro, uma sociedade que não cultiva “os valores da ciência, da filosofia e da religião é uma sociedade fracassada, é um anti-humanismo, é uma contrautopia”. Essa visão humanística o coloca em uma posição singular no debate, indo além das questões técnico-jurídicas para abordar os fundamentos civilizacionais.
O posicionamento do ministro reflete sua trajetória como defensor de maior regulamentação das plataformas digitais. Durante seus 11 meses como ministro da Justiça, Dino se mostrou um defensor da ampla moderação dos conteúdos nas redes sociais e entrou em embates acalorados com as Big Techs. Em sua sabatina para o STF, ele defendeu que as empresas provedoras de redes sociais devem ser reguladas como qualquer atividade empresarial.
A decisão final do STF sobre o artigo 19 do Marco Civil da Internet terá impacto direto sobre como as plataformas digitais operam no Brasil e pode definir novos parâmetros para a responsabilização por conteúdos publicados por terceiros. Com a posição rigorosa sinalizada por Dino, o julgamento promete ser um divisor de águas na regulamentação da internet brasileira.
Leia e assista à íntegra da manifestação do ministro Flávio Dino
“E eu considero que as redes sociais não aproximaram a humanidade daquilo que ela produziu de melhor. As redes sociais não aproximaram a humanidade da ciência, tampouco da filosofia, muito menos ainda da religião.
As redes sociais, se dependessem de mim, receberiam um juízo extremamente negativo em relação ao que vem produzindo feitos nas sociedades humanas.
É preciso ter muito cuidado com o tecnodeterminismo. É uma encruzilhada vital na trajetória do ser humano na Terra.
E há uma coisa curiosa, eu por vezes vejo segmentos religiosos defendendo o tecnodeterminismo sem perceber que ele, em si, como valor, tem uma pretensão antinômica em relação à dimensão religiosa da vida, uma vez que o tecnodeterminismo quer ser Deus, onipotente e onisciente.
E, portanto, não considero mesmo que nós pudéssemos, a essas alturas, se quer classificar isto de redes sociais. Se dependesse de mim, o resultado desse julgamento seria outro, bastante diferente. E seria muito mais rigoroso em relação a tudo quanto aqui dito, porque, de fato, considero que uma sociedade que não cultiva os valores da ciência, da filosofia e da religião é uma sociedade fracassada, é um anti-humanismo, é uma contrautopia.
É preciso ainda assiná-lo, ter muito cuidado com aquilo que é incito hoje a esses meios, que é uma espécie de minimização da mentira, como se fosse algo acessório, menor ou até anedótico. A mentira existe e ela pode ser profundamente nociva, como mostrarei com o trecho do meu voto.
É falso que tudo é uma questão de opinião. Você imaginar que a justiça eleitoral não funciona tão bem quanto gostaríamos é absolutamente legítimo. Contudo, dizer que há uma sala escura no TSE, onde magistrados manipulam o código-fonte, não é uma opinião. É uma mentira e uma mentira tipificada.
As pessoas não são obrigadas a acreditar em Deus. Eu acredito e eu tenho a minha corrente religiosa. Outros têm outra e há agrupamentos agnósticos ou até ateus. Tudo isso é legítimo, tudo isso é uma opinião. O que não pode é, em qualquer meio, inclusive o virtual, aqueles que são agnósticos pretender exterminar quem pensa que Deus existe, ou o contrário.
Então a segunda observação que faço é que é impossível um tribunal que expressa os melhores valores que a humanidade foi capaz de produzir se encontrar diante da mentira institucionalizada e minimizá-la.”