Por Carolina Villela
O ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou que a Câmara dos Deputados, o Senado Federal e o governo federal prestem esclarecimentos em até cinco dias úteis sobre possíveis irregularidades no uso de emendas parlamentares destinadas ao Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs). A decisão ocorre após auditoria da Controladoria-Geral da União (CGU) apontar desvios milionários na aplicação de recursos públicos entre 2021 e 2023.
A investigação revelou que o Dnocs contratou R$ 1,85 bilhão em obras e equipamentos no período analisado, sendo que 60% desse montante foi destinado a ações incompatíveis com a missão institucional da autarquia. Em vez de combater a seca no semiárido brasileiro, o departamento gastou recursos com pavimentação de estradas, aquisição de retroescavadeiras, motoniveladoras e outros equipamentos agrícolas para distribuição em municípios, totalizando R$ 1,1 bilhão em contratos desalinhados com suas atribuições legais.
Desvio de finalidade compromete combate à seca
O relatório da CGU demonstrou que apenas R$ 633 milhões foram aplicados em ações compatíveis com as competências do Dnocs, relacionadas ao combate à insegurança hídrica. A diferença entre os recursos destinados a atividades alheias à missão institucional e aqueles efetivamente aplicados no propósito original chegou a 74%. Os gastos com pavimentação, isoladamente, superaram em 18% os recursos destinados à atividade-fim do departamento.
Em decisão do dia 10 de novembro, o ministro Flávio Dino deferiu medidas cautelares requeridas pela Polícia Federal diante de indícios consistentes de superfaturamento, execução parcial ou inexistente de serviços, utilização de documentos falsos, medições replicadas, má qualidade dos serviços e falhas graves na fiscalização. As irregularidades foram identificadas especialmente em obras de pavimentação custeadas com recursos de emendas parlamentares.
Para o ministro, o cenário indica um desvirtuamento grave da atuação do Dnocs, comprometendo os princípios da legalidade, eficiência e integridade do gasto público. “Cumpre realçar que, a despeito da relevância institucional da autarquia no combate à insegurança hídrica, é inadmissível que sua atuação tenha exposto ou venha a expor o patrimônio público a perdas expressivas e continuadas”, destacou Dino em sua decisão.
Emendas parlamentares financiam obras sem planejamento
A auditoria constatou que, nos anos de 2020 e 2021, o Dnocs empenhou recursos de emendas parlamentares em valores superiores ao dobro dos recursos de despesas discricionárias e do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Parte significativa desses recursos pertencia ao orçamento do Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional (MIDR), executados por meio de Termo de Execução Descentralizada (TED). Até agosto de 2024, os valores empenhados já haviam superado todo o montante do exercício de 2022.
O problema se repete na aquisição de equipamentos agrícolas. Segundo a CGU, o Dnocs não possui diagnósticos sobre a situação da produção agrícola das localidades beneficiadas com as máquinas, nem estabeleceu critérios de priorização. Como as compras são lastreadas em emendas parlamentares, os beneficiários são indicados apenas quando há envio de recursos, sem qualquer estudo técnico prévio.
Diante das evidências, a CGU concluiu que o argumento apresentado pela autarquia de que tais ações estariam alinhadas à sua missão institucional não se sustenta. O desvio de finalidade se agrava quando considerado o esvaziamento progressivo do quadro funcional do Dnocs, sem que as demandas por concurso público tenham sido atendidas pelo Ministério da Gestão e Inovação.
Quadro de pessoal encolhe enquanto gastos disparam
O número de servidores ativos no Dnocs caiu nos últimos anos: de 803 em dezembro de 2021 para 619 em dezembro de 2023. Segundo o último Relatório de Gestão da autarquia, o departamento finalizou 2024 com apenas 532 servidores distribuídos na sede da Administração Central e nas nove Coordenadorias Estaduais. A redução de 33% no efetivo ocorreu exatamente no período em que houve explosão nos gastos com emendas parlamentares.
A CGU destacou que, mesmo tratando-se de emendas parlamentares, o Dnocs deveria ter declarado impedimento de ordem técnica à execução das demandas do Congresso Nacional, já que os objetos contratados não possuem pertinência temática com sua finalidade institucional, conforme estabelecem as Portarias Interministeriais emitidas para cada exercício financeiro.
A situação se torna ainda mais crítica quando analisados casos específicos. No Pregão Eletrônico nº 90009/2024, destinado à execução de passagens molhadas em nove estados do Nordeste e Minas Gerais, com valor estimado em R$ 109,8 milhões, o Dnocs admitiu que os quantitativos foram baseados apenas em consultas de parlamentares para aportes de emendas, sem realização de estudos de necessidades, previsão de demanda ou outros critérios técnicos relevantes.
Ausência de controle facilita fraudes
Questionado sobre a existência de ferramentas de controle para verificar locais e serviços já executados, com coordenadas geográficas e registros fotográficos que evitassem sobreposição de obras, o Dnocs informou à CGU que não possui qualquer mecanismo desse tipo. O controle seria realizado apenas pelas comissões de fiscalização dos serviços e através das documentações apresentadas nas medições, o que corrobora com os graves problemas de planejamento identificados.
Outro caso emblemático é o Pregão Eletrônico nº 90007/2024, para contratação de serviços de recuperação de estradas vicinais nos mesmos nove estados, com valor estimado em R$ 199,6 milhões. A CGU chegou às mesmas conclusões: ausência de estudos técnicos, quantitativos baseados exclusivamente em emendas parlamentares e inexistência de memoriais de cálculo ou banco de dados com informações das vias que receberam intervenções.
A auditoria ressaltou que, apesar do crescimento vertiginoso na execução de serviços de pavimentação por meio de emendas parlamentares, tanto previstas no próprio orçamento quanto via TEDs do MIDR, a autarquia se encontra com quadro de pessoal extremamente deficitário, principalmente na área técnica de fiscalização. A estagnação na alocação de despesas correntes agrava o cenário, dificultando ainda mais a capacidade operacional do departamento.



